Beja dos leais, fraternos e hospitaleiros amigos.


E a primeira memória de Beja é, creio bem, mesmo essa – a de uma torre bela e majestosa a dominar o mar dourado da seara …

José Soares

Advogado

Rádio Volta das Voltas ao Alentejo e Portugal

Nesta espécie de motor de busca (tão imperfeito e rudimentar) a que se chama memória humana, digito com cuidado as quatro letrinhas do termo “Beja” e fico a olhar, cheio de curiosidade, para o ecrã que se abre a cada instante dentro da nossa cabeça, esperando pelas respostas.

“Em dias de grande visibilidade, do alto do castelo de Palmela avista-se a torre de menagem do castelo de Beja”. Tanto tempo passado e ainda me ocorre esta lengalenga antiga, que visava espantar os petizes da minha geração com a vastidão da planície alentejana. Tão diferente era então a noção da distância…

E a primeira memória de Beja é, creio bem, mesmo essa – a de uma torre bela e majestosa a dominar o mar dourado da seara, quando as fileiras geométricas das oliveiras ainda não se impunham na paisagem e tudo era raso em volta.

Veio depois um tempo diferente, em que o nome da cidade invocava as imagens marcadas (ao mesmo tempo rudes e doces) do rosto dos camponeses que juravam ser sua a terra que trabalhavam. Tempos de ilusão e de esperança num futuro melhor e mais justo. O sonho (desfeito) demonstra, ainda hoje, a importância da igualdade, essa palavra infelizmente tão em desuso. Se a memória de Beja ficar ligada a essa quimera, fica ligada ao que de melhor há no mundo.

Era, pouco depois, a Beja adormecida que, madrugada alta, se avistava da janela do comboio-correio vindo do Algarve a caminho (lento) do Barreiro. Era a Beja do “Luís da Rocha”, no tempo em que os namorados ainda ofereciam bolos às namoradas. E foi depois a Beja da Volta ao Alentejo, dos leais, fraternos e hospitaleiros amigos ligados a esse maravilhoso mundo das bicicletas.

Cidade muito esquecida e injustamente menorizada, quem de alma limpa a procura descobre nela o orgulho sereno que a caracteriza. Terra de insistentes, de teimosos, de resistentes. Muitos dos seus filhos lembram, nas suas próprias vidas, a cidade que se avista a muitos quilómetros de distância, segura e firme, erguida da planura. Cidade que não olha, mas é olhada, como quem esteve, está e estará sempre ali e não poderia estar noutro lado. Não se compara, nem se pode comparar, a quaisquer outras. Não vale por ser mais ou por ser melhor, vale apenas por ser. Por ser a cidade de Beja.

Talvez seja mesmo verdade que a geografia física se comunica à alma das gentes. Talvez, por isso, as pessoas nem mesmo perante a má fortuna, as humilhações e as tragédias que a vida nos reserva percam a sua dignidade. Outros baixam-se, rendem-se, cedem, negoceiam, limitam os danos. Os de Beja não. Como essa que, vendo o mundo enclausurada atrás de uma janela, há mais de três séculos escreveu: “Parece-me que demasiadas vezes me dilato em falar do estado insuportável em que estou. Contudo agradeço-te, do íntimo do meu coração, a desesperação que me causas, e aborreço o sossego em que vivi antes de conhecer-te…”.

E é agora essa música intrinsecamente genuína, que o mundo se dignou finalmente escutar. O coro dos que nunca cantam sozinhos. Dos que têm vozes que saem directamente da terra que as suas botas escalavram. Dos que são elos de uma corrente intemporal. Cante e não canto. Canto há por todo o lado, canto disto e canto daquilo. Cante só há um.

É fácil, podem crer, ser visitante em terra assim, é fácil ficar tocado pela cidade, pelo trato e convívio dos bejenses deste tempo que é o nosso. O visitante encanta-se, guardando o que sente no alforge dos seus afectos. E quando regressa à sua terra e se embrenha na sua vida, foge-lhe por vezes o pensamento e esquece-se dos labores que o apoquentam, pensando com os seus botões como estaria bem melhor sentadinho à mesa no monte do Zé Luzia (não confundir, como diz o Teixeira Correia, com o monte de Santa Luzia…), apreciando um valente petisco, provando um branquinho da Vidigueira e ouvindo a voz incomparável do amigo Bernardo. Ai que saudades, ai, ai!…


Share This Post On
468x60.jpg