Beja: Juiz Desembargador José Lúcio, fala em exclusivo, da Reforma Judicial e faz balanço do mandato.
A Reforma Judicial entrou em vigor em 1 de setembro de 2014, dia em que o Juiz-Desembargador José Lúcio, tomou posse como Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Beja. Vinte meses depois o juiz faz o balanço desta nova realidade onde destaca que “há um melhor aproveitamento dos recursos existentes”.
Na entrevista em exclusivo ao Lidador Notícias (LN), o juiz defende que “a nova orgânica trouxe efectivamente vantagens”, justificando que no caso do Tribunal Judicial da Comarca de Beja “verifico que hoje (dia 1 de Maio) na estatística oficial estão pendentes 12.430 processos, enquanto no dia 1 de Setembro de 2014 constam 14.285”.
Lidador Notícias (LN) A Reforma Judicial entrou em vigor em 1 de setembro de 2014. Que principais alterações foram introduzidas?
Juiz Desembargador José Lúcio (JL) – A alteração mais notória é de natureza orgânica. Existem agora vinte e três comarcas, e em cada uma delas um Tribunal Judicial da Comarca, em substituição das múltiplas realidades antes existentes na respectiva área territorial. As novas unidades correspondem em geral ao distrito administrativo, como acontece no caso da Comarca de Beja.
Concretizando, o Tribunal Judicial da Comarca de Beja abrange os municípios de Beja, Almodôvar, Aljustrel, Alvito, Barrancos, Castro Verde, Cuba, Ferreira do Alentejo, Odemira, Ourique, Mértola, Moura, Serpa e Vidigueira. Em suma, nesta região foram extintos dez tribunais anteriormente existentes e em sua substituição criou-se um único, que absorveu as competências dos anteriores.
Em todo o país a situação é idêntica. Criaram-se novas unidades, de âmbito muito mais vasto, na convicção de que essa racionalização do sistema e a gestão unificada das novas realidades viesse trazer ganhos em termos de produtividade e eficiência.
(LN) Volvidos 20 meses que balanço faz dessa Reforma?
(JL)- Creio poder afirmar com segurança, com base na experiência já existente, que a nova orgânica trouxe efectivamente vantagens, traduzidas num melhor aproveitamento dos recursos existentes. Sublinho que a reforma judiciária foi efectuada sem que fossem fornecidos quaisquer meios adicionais em relação ao que já existia. Os meios humanos e materiais que havia transitaram para a nova organização judiciária, sem qualquer acréscimo. Isso implicou que as novas comarcas tivessem que enfrentar a sua missão num quadro extremamente difícil, caracterizado nomeadamente pela escassez de pessoal e dificuldades ao nível das instalações. Estes problemas condicionaram toda a actuação dos tribunais, impedindo que a sua prestação atingisse os níveis que todos desejariam. Sublinhe-se porém que tais problemas dependem inteiramente da administração central, e que com a pobreza de meios disponíveis os tribunais trabalharam muito e bem.
No caso do Tribunal Judicial da Comarca de Beja verifico que hoje (dia 1 de Maio) na estatística oficial estão pendentes 12.430 processos, enquanto no dia 1 de Setembro de 2014 constam 14.285. Houve portanto em 20 meses uma diminuição da pendência global que é possível quantificar em menos 12,99 % (quase treze por cento).
São os números disponíveis, e não parece que possam ser desvalorizados. Se os tribunais pudessem baixar as suas pendências em dez por cento ao ano ao longo de alguns anos sucessivos conseguia-se em poucos anos trazer para números aceitáveis a acumulação anómala de processos que pesam sobre os tribunais há muito tempo. Ou seja: os processos eram muitos, e ainda são demais. Mas a taxa de resolução tem sido boa, aqueles que findam são mais do que aqueles que entram. Não será motivo para deitar muitos foguetes, mas é algo que merece inequivocamente ser reconhecido.
(LN) Que alterações positivas e negativas trouxe ?
(JL)- Todas as mudanças implicam um preço, e as grandes mudanças normalmente têm custos elevados. No caso desta reforma judiciária, que representou evidentemente uma enorme alteração numa orgânica com fortes raízes históricas (foram extintas dezenas e dezenas de comarcas com existência secular) o preço a pagar ficou a cargo das populações periféricas, que com as novas centralidades ficaram obviamente mais distantes dos locais onde foi concentrada a administração da justiça. Julgo que se houver ganhos sensíveis no que respeita a eficiência, uma melhor capacidade de resposta da nova orgânica, essas mesmas populações acabarão por compreender a alteração.
Com efeito, a situação apontada não é diferente do que acontece noutros sectores. Não é possível instalar um bom hospital em cada povoação, porque nunca existirão meios suficientes para isso. Mas se aqueles que existem garantirem satisfatoriamente os fins a que se destinam, e as pessoas sentirem que o seu acesso à saúde está devidamente assegurado, reconhecerão o facto. Não é diferente do que acontece com um tribunal.
(LN) Com a reforma, a justiça ficou mais agilizada?
(JL)- Como apontei atrás, pelo menos os processos resolvidos têm sido em número superior aos entrados de novo… o que já indica alguma melhoria na resposta dada pelo tribunal. Creio porém que a referência a agilização tem a ver sobretudo com a duração média dos processos. Ora este indicador precisa de mais tempo para ser medido com algum rigor. A generalidade dos processos que têm sido agora decididos vinham da anterior estrutura judiciária, eram processos já pendentes anteriormente, e a sua tramitação foi naturalmente afectada pelas vicissitudes do percurso (pensemos por exemplo nos meses em que os problemas com o sistema informático atrasaram o normal andamento dos trabalhos nos tribunais). Com mais alguns meses, podendo analisar-se um acervo significativo de processos já entrados na nova estrutura e tramitados inteiramente por esta, estou convencido que também a duração média dos processos apresentará melhorias visíveis.
(LN) Uma das queixas constantes é dizer-se que a justiça “é para os ricos”. Concorda com esta “vox populi”?
(JL)- A lei é igual para todos, e quem trabalha nos tribunais esforça-se todos os dias para que ela seja aplicada a todos de forma igual. Dito isto, é forçoso reconhecer que nem todos têm igual capacidade para se confrontar com a administração da justiça. Uns podem mais do que outros, e por isso a sua capacidade para enfrentar as questões que a justiça lhes possa colocar não é igual. Todos sentimos isso, e seria excelente que assim não fosse – mas essa desigualdade é exterior ao sistema de justiça, e não pode ser resolvida nesta sede. Quem legisla talvez pudesse fazê-lo de forma a que aqueles que menos podem vissem protegidos os seus direitos, e aqueles que mais podem se vissem impossibilitados de abusar tanto desses direitos que por vezes forçam os mais cínicos a pensar que a justiça não se lhes aplica.
Ainda assim, penso que os tribunais continuam a ser uma esperança e um recurso para aqueles que carecem de justiça, e noutras instâncias não a encontram.
(LN) Qual o número de processos pendentes (se for possível discriminar por mais de um ano, de dois de três etc.) para julgamento no Tribunal de Beja?
(JL)- Tenho que recorrer ao sistema informático disponível, que constitui a única fonte oficial. Desse modo tenho que começar a 1 de Setembro de 2014, uma vez que antes dessa data o Tribunal Judicial da Comarca de Beja não existia (o que existia eram os dez tribunais então extintos, e cada um destes tinha a sua pendência particular). Verificando os dados, temos que a 1 de Setembro de 2014 a pendência global no Tribunal Judicial da Comarca de Beja era de 14.285 processos, como já referi. Passados quatro meses, no dia 1 de Janeiro de 2015 essa pendência era de 14.646 (as dificuldades da transição de processos, e a paralisação do citius, tinham provocado um ligeiro aumento). Foi esse o período mais difícil, os quatro meses finais de 2014. Posteriormente, temos que em 1 de Janeiro de 2016 o número de processos pendentes já era de 12.824 (ou seja, num ano baixou significativamente). Neste momento, verifica-.se que passados estes quatro meses de 2016 o movimento continuou a ser no sentido da descida, uma vez que a pendência está agora nos 12.430 que já mencionei.
(LN) Falta de instalações e de funcionários são queixas recorrentes. Qual o panorama geral da Comarca?
(JL)- Efectivamente os grandes problemas diagnosticados na Comarca de Beja, e que eram já bem conhecidos antes da reforma judiciária, consistem na falta de preenchimento dos quadros de pessoal e nas insuficiências das instalações judiciárias no núcleo central, a cidade de Beja. Com as aposentações entretanto ocorridas agravou-se naturalmente a falta de oficiais de justiça, com a agravante de terem ficado vagos precisamente os lugares de chefia, aqueles que eram ocupados pelos funcionários mais antigos e experientes, que não são fáceis de substituir. Neste momento o Tribunal Judicial da Comarca é a nível nacional aquele em que se verifica uma maior percentagem de vagas por preencher (a falta ronda os 40%).
Se continuar a não haver reforço dos quadros, é inevitável que o desempenho do tribunal venha a ressentir-se, com grave prejuízo para a justiça. Não pode fazer-se com sessenta pessoas o que estava previsto fazer-se com cem.
Quanto às instalações, é sabido que desde sempre a secção do Trabalho tem funcionado precariamente num edifício impróprio para tal e que a ausência de espaços viáveis levou a que a secção de Família e Menores fosse deslocalizado para Ferreira do Alentejo, em vez da sua sede natural, em Beja. Também o Palácio da Justiça, onde coexistem as instâncias locais cíveis e criminais de Beja e as instâncias centrais cíveis e criminais, não tem condições para albergar esse conjunto de serviços, com sacrifício inevitável para funcionários, magistrados e público utente – e para a própria qualidade do serviço.
Estes problemas, que como disse são anteriores à nova estrutura judiciária e que estariam presentes qualquer que fosse a orgânica em vigor, permanecem por resolver, e justificam as preocupações de todos os interessados na boa administração da justiça em Beja.
(LN) Beja enquanto sede de Comarca tem quatro tribunais espalhados por outros tantos edifícios e duas localidades. Há previsão para ultrapassar este cenário e construir um Palácio da Justiça que abarque todas as valências?
(JL)- Não há previsão, mas há promessas e intenções afirmadas. Os responsáveis do Ministério da Justiça, na sequência da disponibilidade repetidamente afirmada pela Câmara de Beja, têm reiterado o seu propósito de edificar em Beja instalações que possam satisfazer as necessidades das várias instâncias judiciárias, completando o parque judiciário até agora limitado ao velho Palácio da Justiça, inaugurado há mais de 64 anos e obviamente incapaz de dar resposta às novas realidades. Vamos aguardar.
(LN) O que é o Conselho Consultivo da Comarca de Beja? Quem o compõe e quais as suas atribuições?
(JL)- O Conselho Consultivo é, como o nome indica, um órgão da Comarca com funções consultivas, introduzido pelo art. 109º da nova Lei da Organização do Sistema Judiciário. As suas funções têm que relacionar-se com o Conselho de Gestão, e em ligação com este.
A sua composição integra, para além dos membros do Conselho de Gestão (Juiz Presidente, Procurador Coordenador e Administrador Judiciário), também os representantes eleitos dos juízes, dos magistrados do Ministério Público e dos oficiais de justiça da Comarca, e ainda um representante da Ordem dos Advogados, um representante da Câmara dos Solicitadores, dois representantes dos municípios e até três representantes dos utentes dos serviços de justiça (no caso de Beja optámos por profissionais ligados às instituições de ensino, de saúde pública e de assistência social do distrito).
(LN) Com a nova Reforma Judicial, tomou posse como Juiz Presidente da Comarca de Beja. Quais são as suas atribuições?
(JL)- As atribuições do Juiz Presidente do Tribunal estão reguladas no art. 94º da Lei da Organização do Sistema Judiciário: são competências de representação e direcção, de gestão processual, administrativas e funcionais, aí especificadamente pormenorizadas.
Compete-lhe nomeadamente presidir também ao Conselho de Gestão e ao Conselho Consultivo da Comarca.
Como exemplo, integra as funções de representação exterior esta que estou a exercer: responder perante a comunidade em que o tribunal se insere, ser o rosto visível do tribunal, prestar contas daquilo que se faz.
(LN) Que balanço faz destes 20 meses de mandato?
(JL)- O meu mandato é de três anos, pelo que só termina em Junho de 2017 – e só então terei que fazer um balanço pessoal. Não posso deixar de confessar, todavia, que o exercício tem sido para mim gratificante. Vim com espírito de servir, e só os outros poderão dizer se servi ou não. Mas para mim tem sido gratificante. Faltava-me Beja, depois da vida vivida em Évora e em Portalegre. Agora já nem isso me falta para ser um alentejano mais completo.
Esta gente é a minha gente; e o esforço para fazer muito com pouco, que é tão habitual aos alentejanos, não abala esse meu sentimento de que valeu a pena.
(LN) Se pudesse que correcções introduziria agora do âmbito da Reforma da Justiça, tanto a nível global (País), como genericamente na Comarca?
(JL)- De imediato não introduziria alterações à actual organização judiciária. As reformas precisam de tempo para ser avaliadas, e esta ainda não tem duração suficiente para estar a sofrer alterações. A mania funesta das reformas das reformas, ou das contra-reformas, é um factor de instabilidade e insegurança e os tribunais precisam de estabilidade e segurança.
O que faria certamente era tomar as medidas de que a administração da justiça necessita, e que são conhecidas.
Por um lado reforçar o mais depressa possível os quadros dos tribunais com a admissão do pessoal necessário para preencher as vagas, e desbloquear as promoções para os actuais oficiais de justiça, de modo a que cada um aceda ao que seria o seu posto normal na carreira, que muitos aguardam após décadas de serviço enquanto permanecem vagos os lugares pretendidos.
Por outro lado dotar os tribunais com os meios necessários ao cabal cumprimento da sua missão, nomeadamente ao nível das instalações.
Numa palavra, tratava os tribunais com a dignidade correspondente à sua natureza de órgãos de soberania. O poder judiciário é um dos poderes do Estado, não pode continuar a ser tratado pelos restantes poderes do Estado como um parente pobre sempre dependente do que sobrar nas negociações do orçamento.
Notas do curriculum:
José Lúcio. 57 anos. Alentejano. Juiz há quase 30 anos.
É Juiz Desembargador do quadro do Tribunal da Relação de Évora, mas foi nomeado pelo Conselho Superior da Magistratura em comissão de serviço para Juiz Presidente do novo Tribunal Judicial da Comarca de Beja, em Abril de 2014, cargo que exerce actualmente.
Anteriormente exerceu como Juiz de Direito em Portalegre, Moita do Ribatejo, Mogadouro, Torres Novas, Porto e Évora.
Teixeira Correia
(jornalista)