Opinião (José Lúcio-Juiz): Continuar a reforma judiciária.


Passados mais de seis anos sobre a entrada em funcionamento da nova estrutura judiciária resultante da reforma operada em 2014 é já tempo de lançar um olhar sobre o decurso destes anos e os resultados práticos das mudanças então introduzidas.

José Lúcio 

Juiz

Numa observação breve e superficial ocorre-me dizer que as dificuldades e os problemas existentes na administração da justiça não são consequência da reforma, mas a capacidade para os enfrentar com sucesso fica sem dúvida a dever-se às alterações orgânicas então entradas em vigor.

Com efeito, carências materiais, em equipamentos e recursos humanos, são as queixas mais recorrentes – mas isso são questões que vinham de trás, e são comuns a muitas outras áreas da administração. O que surgiu de novo foi a possibilidade de fazer frente com sucesso a esses condicionalismos e conseguir superá-los no dia-a-dia.

Tem sido possível fazer muito com pouco.

Sim, porque não é possível deixar de reconhecer que os resultados da Justiça neste período são francamente positivos – diria mesmo surpreendentemente positivos. Se recorrermos a qualquer das fontes disponíveis, seja na Direcção Geral da Política de Justiça seja na Direcção Geral da Administração da Justiça seja no IGFEJ ou nos vários observatórios e outros centros de tratamento de dados dependentes ou não dos Conselhos Superiores e das Universidades chegamos sempre à conclusão que as pendências processuais desceram de uma forma notável, em proporções que em muitas áreas e instâncias rondam os 50% ou os excedem.

Ora é na resolução de processos que se concretiza a vocação fundamental do sistema judiciário, e na capacidade de os resolver que se encontra a medida da sua eficiência.

Nenhuma outra área ou sector de actividade pode entre nós apresentar melhores indicadores de desempenho no mesmo período, sejam quais forem as percepções que se espalhem. Porém, chegados aqui, impõe-se dizer que a reforma não está finda e completa, e antes pelo contrário a sua dinâmica apela à sua continuação.

Não me refiro apenas à consolidação e aprofundamento do modelo de gestão das comarcas, aspecto mais visível da reforma e que tem sido afinal a chave para os ganhos de eficiência e as poupanças de escala que efectivamente ocorreram. Esse modelo, de vez em quando alvo de desconfianças atávicas, deve realmente ser consolidado e aprofundado, acentuando as responsabilidades do juiz presidente, do magistrado coordenador do MP e do administrador judiciário e reforçando na prática as suas funções de gestão do sistema a nível local.

Mas não era esse o ponto em que estava a pensar quando referi que a própria dinâmica da reforma impelia à sua continuação. Em vários artigos sobre o assunto vieram a público duas personalidades insuspeitas, João Luís Mota Campos e João Miguel Barros, apontar o caminho lógico do desenvolvimento da reforma judiciária na senda das modificações já concretizadas.

O primeiro foi o Secretário de Estado responsável pelo desenho actual dos tribunais administrativos e fiscais, o segundo foi o Chefe de Gabinete da Ministra que coordenou todo o processo da reforma dos tribunais judiciais. Ambos são conhecedores profundos do sistema. Os dois convergem na defesa de uma solução que está obviamente no espírito da reforma de 2014.

Muito simplesmente, trata-se da extinção dos tribunais administrativos e fiscais. Os tribunais judiciais são desdobrados em juízos especializados, e têm juízos cíveis, juízos criminais, juízos do trabalho, juízos do comércio, juízos de família e menores, etc. Nada impede que tenham também juízos administrativos e juízos tributários.

Claro que a extinção da jurisdição administrativa e fiscal é muito complicada, e levanta inúmeros problemas de ordem prática. Mas isso já sabemos. O que parece certo é que se ganhava muito na racionalização de todo o sistema, e ao mesmo tempo dava-se cumprimento à orientação constitucional que alude aos juízes como um corpo único. E até podemos admitir a hipótese de por essa via finalmente vir a caminhar-se para a resolução das crónicas dificuldades que todos reconhecem na justiça administrativa e fiscal.

A extinção dos tribunais administrativos e fiscais e a integração dessas matérias na orgânica dos tribunais judiciais, a extinção do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a consequente criação de um único Conselho Superior, a extinção do Supremo Tribunal Administrativo e a passagem das suas competências para o Supremo Tribunal de Justiça, a extinção dos outros tribunais superiores administrativos e fiscais e o inerente alargamento dos Tribunais da Relação – eis todo um programa.

Dir-me-ão que é extinção a mais, e que isso é inexequível. Acredito que não seja – normalmente cortar faz sangue, e só de pensar nisso muita gente se arrepia. Ainda assim, fico na minha – é um belo programa. Seria de toda a conveniência, nada o impede e tudo o aconselha.

Melhor do que isso só a extinção ao mesmo tempo do Tribunal Constitucional, órgão estranhíssimo que faz do nosso sistema jurídico um monstro bicéfalo. Reconheço porém que este ponto ainda é mais difícil de concretizar do que os restantes pontos programáticos a que aludi. O Tribunal Constitucional é o lugar onde os nossos políticos gostam de ser julgados, depois de terem escolhido e designado os respectivos juízes. É um Tribunal muito querido precisamente entre aqueles a quem compete decidir estas coisas. Dificilmente haverá maneira de acabar com ele.

Reconheço todas as objecções, e concedo que têm razão. Ainda assim, não resisto a adiantar umas ideias e fazer umas sugestões. Nem que seja só pelo prazer de pensar.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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