Opinião (José Lúcio/ Juiz): Falemos então de corrupção.


Em editorial da semana passada o director do Diário do Alentejo expressava notório sentimento de desconforto ao salientar que “enquanto o compadrio estiver instituído na base da cadeia e até legalmente institucionalizado e enquanto a prevalência nas escolhas mais elementares for a cor do cartão que se traz na carteira, a corrupção em Portugal será sempre um mal, claro que sim. Mas, pelos vistos, um mal menor.”

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

Não negando a razão do articulista, parece-me oportuno acrescentar que o pior está na circunstância de não ser apenas na base da cadeia que reside o mal. Esse mal está instalado desde a base até ao topo, desde as massas às elites.

E para muitos não se trata de um mal menor, mas de um viver habitual. Vimos e ouvimos gente de grande responsabilidade, até moral e intelectual, a intervir no espaço público para defender que esquemas de corrupção de dimensão estratosférica no Brasil, em Angola ou na Venezuela são afinal para encarar com compreensão por muitas e boas razões. Uns, mais intelectuais, invocam pomposamente as particularidades do processo histórico em curso nessas sociedades. E outros, pragmáticos e espertinhos, apontam-nos as conveniências políticas, diplomáticas e comerciais. E todos nos advertem que, pensando bem, no combate a essas realidades é que residem todos os horrores e perigos a exorcizar.

As solidariedades, entenda-se, vão inteirinhas para a manutenção dessas dinâmicas de poder.

As mesmas vozes, por pudor, não falam com a mesma clareza em relação à sociedade portuguesa, mas percebe-se muito bem que o pensamento não é diferente. Antes assim que pior, é a ideia. E muito longe qualquer sentimento de condenação.

Temos assim que em matéria de corrupção uma coisa é a unanimidade fingida e outra coisa bem diferente é a realidade.

Quando se fala de corrupção ou se apontam casos concretos é costume entre nós gerar-se logo um forte coro de indignações, ritualizadas pelo hábito. O coro soa em regra desafinado, porque cada um dos participantes tenta gritar mais alto que o outro e nenhum quer ficar atrás no ardor moralista. Infelizmente, é notório que esse louvável sentimento de reprovação só aparece quando a corrupção em causa é a dos outros, porque se for entre os seus não faltarão compreensão nem desculpas.

A corrupção tornou-se deste modo um fenómeno que todos abominam por palavras, e mais ou menos todos toleram. Serve de instrumento de ataque se for detectada no adversário, e gera reacções de silêncio cúmplice quando verificado nos da mesma cor, seita ou partido.

Não é o comportamento que é objecto da reprovação geral, aquilo que provoca o ruído é somente a disputa partidária, ou de grupo ou de facção.

De resto, não existe nenhuma reprovação social generalizada. Numa sociedade onde a cultura enraizada é a da cunha, do favorzinho, do conhecimento, a corrupção medra espontaneamente a todos os níveis – em cada um com o seu grau de gravidade e com a sua forma própria. Uns lutam por tostões, outros batem-se por milhões.

É impossível não notar que nunca as acusações de corrupção, mesmo provadas e de conhecimento público, trouxeram qualquer penalização dos seus agentes em termos eleitorais. Pelo contrário, por vezes implicaram até algum prestígio para os protagonistas, vistos logo pela grande massa dos eleitores como pessoas que fazem o mesmo que todos os outros mas com mais coragem que os outros. E largamente compreendidos e aceites, porque afinal… eles são todos iguais, se este faz os outros também fazem, e este já nós conhecemos… e não há ninguém que mexa no mel e não lamba os dedos, claro.

O certo é que não faltam exemplos de quem colheu vantagens eleitorais para compensar agruras judiciais.

Não existe na sociedade portuguesa reprovação autêntica e sincera em relação à corrupção, e muito menos penalização efectiva por força dessa prática. Ninguém é votado ao ostracismo por ter sido apanhado em flagrante, e isso sabe-se. O coro ritual de que falei atrás soa a falso, e a sua falsidade também é conhecida. Não é a sério.

Neste contexto é ilusório pensar que as práticas institucionalizadas de corrupção podem ser combatidas eficazmente apenas pela via policial ou judiciária. Obviamente que a melhoria dos meios de prevenção, de investigação e de punição podem conduzir à descoberta de mais situações concretas, e expor mais redes e responsáveis. Todavia, será sempre um combate casuístico a uma realidade que é vasta e multiforme.

Consequentemente, e sem desvalorizar a função pedagógica que a actividade policial e judiciária pode e deve desempenhar no conjunto da sociedade, devemos recear que a sua eventual eficácia seja circunscrita aos casos específicos em que for possível actuar, não afectando decisivamente práticas que tendem a reproduzir-se e a prosseguir, ainda que com outros protagonistas. As redes tendem a reconstituir-se, como as teias de aranha ocasionalmente danificadas.

Só uma cultura cívica diferente, marcada pela exigência e pelo rigor, poderia reduzir à mais ínfima expressão práticas que enquanto socialmente aceites dificilmente podem ser combatidas apenas pela acção de órgãos policiais e judiciários. Enquanto significar a expressão de uma mentalidade em que ela surge como normal, não parece que a corrupção possa ser decisivamente afectada pelo eclodir de casos e casos, que serão apenas isso mesmo – situações avulsas e pontuais que correram mal.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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