Opinião (José Lúcio/ Juiz): Tempos difíceis.


Nos tempos que correm parece alastrar nos mais diversos centros difusores de opinião a ideia de que um tribunal só funciona quando condena. Se absolve, não se fez justiça. Não será certamente esse o sentimento de um cidadão que seja falsamente acusado de um crime que não cometeu.

José Lúcio

Juiz

E na realidade não é possível a ninguém que faça uso de um mínimo de bom senso acompanhar essas posições, por mais populares que as veja. A função de um tribunal é julgar, e do julgamento podem naturalmente resultar condenações ou absolvições. Umas como outras podem justificar-se ou até impor-se, em face do julgamento realizado – ao tribunal cabe extrair a conclusão.

Não faz sentido apresentar como demonstração da proclamada ineficácia da justiça os números onde se constata que em determinada matéria as queixas foram muito mais do que as acusações e estas foram mais do que as condenações. Essa abordagem não revela conhecimento nem rigor.

Não será pelas condenações ou pelas absolvições que pode avaliar-se a saúde da justiça, ou o bom funcionamento dos tribunais. O que devemos reclamar destes é que condenem quando seja para condenar e absolvam quando seja para absolver.

Se um julgamento só servisse para condenar podíamos com vantagem prescindir dos julgamentos. E até dos tribunais. Outra instituição qualquer poderia tratar das condenações. Talvez mesmo o multibanco, devidamente programado, desse resposta a esse  objectivo.

Um tribunal é um órgão por natureza independente e imparcial, que tem por função administrar justiça – e isso significa necessariamente apreciar com isenção e em inteira liberdade as acusações que lhe sejam apresentadas para julgar. Não pode tomar partido, nem ter causas ou agendas, ou posições antecipadas.

O resultado de um julgamento só pode estar dependente do próprio julgamento, e da lei que o julgador tenha que aplicar. Nessas tarefas não pode o tribunal estar condicionado à partida ou à chegada por pressões, campanhas, modas ou conveniências.

O clamor pelas condenações não se identifica com qualquer sentimento de justiça. Os políticos, os comentadores e restantes produtores de opinião deveriam deter-se antes de cair na tentação de cavalgar o mais baixo dos populismos.

E choca observar como frequentemente são aqueles que mais proclamam o imperativo de combater o populismo (dos outros) que resvalam na exploração e no aproveitamento dos piores instintos das massas. Querem tanto agradar que acabam por esquecer de todo qualquer ideia de justiça.

 Pilatos também tentou dessa forma conquistar a popularidade, e nem isso conseguiu. De caminho sacrificou um inocente e agraciou um ladrão, mas esse é o resultado que colhe quem se guia pelo ruído da praça.

Devia ser desnecessário enunciar aqui estas banalidades, mas infelizmente não é. Enfrentamos hoje novos desafios, que justificam a reafirmação até dos mais básicos dos princípios.

Desde logo, a pressão de uma comunicação social cada vez mais agressiva, dominada por um jornalismo de arrastão, em que um atira a prineira pedra e os outros vão todos atrás.

A vontade de condicionar os tribunais, de os submeter a orientações exteriores previamente dadas como correctas, parece dominar essa comunicação social e estender-se a grande parte da classe política.

Não sabemos onde este movimento vai parar. Mas temos que manifestar a nossa apreensão. O clima de caça aos juízes que parece estar instalado não pode conduzir a nada de positivo.

Hoje como ontem impõe-se o reforço do essencial, que é a independência dos tribunais, e esse reforço implica reafirmá-la perante os outros poderes do Estado e em face dos múltiplos poderes fácticos da sociedade envolvente.

Essa é missão que os juízes devem assumir como sua, todos os dias, tanto mais imperiosa quanto mais difíceis os tempos. Com serenidade e firmeza, sem transigências nem desfalecimentos. Atrás de tempos vêm tempos, e outros tempos hão-de vir.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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