Opinião (José Lúcio/ Juiz): Tribunais, equÃvocos e ilusões.
Há uns anos em luzida conferência na Gulbenkian uns economistas certamente muito doutos tentavam demonstrar à plateia, com quadros, gráficos e cálculos que esmagavam qualquer incrédulo, que caso os tribunais funcionassem com eficiência no processamento de toda a massa de execuções pendentes isso arrastaria um impulso no PIB de cerca de 1 % (um por cento).
(Juiz Presidente da Comarca de Beja)
Impressionante, o passe de mágica: somando os valores de todos os pedidos formulados em acções executivas atinge-se um montante astronómico, e supondo a cobrança efectiva de tal valor o impacto no produto interno bruto seria dessa ordem de grandeza.
O que mais me impressionou logo ali foi a absoluta cegueira em relação à evidente falácia do raciocÃnio. Obviamente, o valor em causa não tem existência real, nunca será cobrado porque não existe, e a máxima eficiência dos tribunais, funcionando a cem por cento, conduziria sem dúvida ao arquivamento dessa enorme pendência de execuções por dÃvidas, sem resultados grandemente significativos em termos de cobrança.
Por outras palavras, o grande problema com as execuções por dÃvidas está em que os devedores não têm dinheiro nem bens para as pagar, e por consequência a eficácia processual traduzir-se-ia nessa constatação (o devedor não tem bens) e o subsequente arquivamento dos autos. Nem por sombras a tal eficiência máxima conduziria à cobrança efectiva desses montantes, como pressupunha o cálculo apresentado e a arrojada conclusão.
Essa riqueza não existe na esfera dos devedores, e esse facto invalida de todo semelhantes afirmações. Não será da eficácia dos tribunais (ou dos solicitadores de execução, como seria mais rigoroso referir actualmente) que a economia pode esperar tão significativo impulso.
Exemplos simples e vulgares não faltam em qualquer juÃzo: indivÃduos ou casais a quem sucessivos créditos, em tempos de torneira aberta, permitiram acumular débitos de sessenta, setenta ou cem mil euros, nunca poderão ser coagidos a pagar essas quantias quando os seus rendimentos totais nem chegam para as despesas mais prementes.
Não existe eficácia que chegue para cobrar cem mil euros a quem não tem mais do que seiscentos por mês.
Regressando ao inÃcio, o exercÃcio artificial de somar o valor da causa em todas as execuções pendentes no sistema judicial e assim alcançar uma verba gigantesca de não sei quantos milhares de milhões para depois concluir sem pestanejar que bastaria que o aparelho funcionasse para se cobrar tal enormidade e desse modo provocar um brilharete na economia real não passa de uma futilidade vazia de conteúdo. Essa riqueza não existe.
Qualquer banco sabe bem o que são incobráveis, e alinha-os no lugar certo (quando não pretenda maquilhar a sua verdadeira situação, com malabarismos de contabilista). Mas os tais economistas doutos, desconhecedores das realidades que se escondem por sob os números, alimentam as ilusões de que a multidão de devedores exauridos que perderam de todo a capacidade para cumprir e na sequência disso foram engrossando as fileiras dos demandados em processo de execução poderão alguma vez ser objecto de cobrança coerciva… caso os tribunais funcionem capazmente.
Escapa-lhes que não se pode tirar água de um poço vazio.
Estes considerandos surgem-me hoje porque me deu em pensar num fenómeno com que frequentemente deparo: o exagero das expectativas em relação aos tribunais. Coexiste habitualmente um discurso de desilusão a respeito dos tribunais com um discurso de ilusão em relação aos mesmos: os tribunais não funcionam, mas se funcionassem… isso é que era! Escorria por aà vinho e mel, para usar uma imagem bÃblica (espero que ainda seja permitido).
Uma visão mais sensata e realista levaria a concluir que os tribunais não podem dar tanto como se espera deles. Expectativas demasiado elevadas geram frustrações na mesma medida. Há problemas, sociais, económicos e de muita e diversa ordem, que se localizam a montante ou a jusante do sistema judicial, e para as quais este não constitui resposta suficiente, por melhor que seja.
(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)