Opinião (Rogério Copeto/ Oficial GNR): A FALÊNCIA DO SISTEMA QUE NÃO EXISTE.
O fenómeno da Violência Doméstica (VD) teve na semana passada, uma visibilidade fora do comum, porque aparentemente, o limite de mortes em contexto de relações de intimidade por mês, para que a sociedade se indigne e tome consciência da gravidade que a VD assume em Portugal, é de nove mulheres e uma criança.
Tenente-Coronel da GNR
Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna
Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação
Mas, infelizmente continuamos a não conseguir indignarmo-nos da mesma forma pelas 44 mortes, que resultaram dos 10.931 acidentes rodoviários, que ocorreram entre 1 e 31 de janeiro, nas estradas portuguesas, não sendo suficiente por isso terem falecido 44 avós, pais e filhos, para que a sociedade portuguesa tome consciência da guerra civil que está a acontecer nas nossas estradas.
No entanto, o artigo de hoje não é sobre segurança rodoviária, mas sim sobre VD, pelo que o famigerado número de 9 mulheres e uma criança, que morreram em contexto de VD, começou a tomar forma em 5 de janeiro em Lagoa, no Algarve, com o homicídio de uma mulher, seguido de suicídio do presumível homicida, tendo a nona mulher sido assassinada no dia 4 de fevereiro, no Seixal, pelo genro, que também assassinou a sua própria filha de dois anos, suicidando-se horas depois a 200 km de distância, cuja ocorrência despoletou em todos os setores da sociedade, a necessidade de se tomarem medidas para acabar com as mortes de mulheres em contexto de VD.
Para quem esteve atento às notícias, artigos de opinião, programas e noticiários de televisão, onde peritos e não peritos, abordaram o assunto da VD na semana passada, ficou a saber que “apenas 15% dos casos de violência doméstica encerrados em 2017 resultaram numa acusação do Ministério Público (MP)”, resultando em 85% de processos arquivados. Apesar desta conclusão não ser nova, porque já era conhecida em 29 de julho de 2017, de acordo com os dados da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa que revelaram que a maioria dos casos de violência doméstica acabam em arquivamento devido ao silêncio a que se remetem as vítimas durante o processo.
E hoje sabe-se que a nona mulher e a criança assassinadas no Seixal e que provocou toda esta indignação, se incluem nestes 85% de processos arquivados, porque a mãe e filha das vítimas apresentou queixa na PSP por VD em 2017 contra o agressor, tendo o MP arquivado o processo, por ter tipificado um crime distinto, depois da PSP ter participado o crime como VD e “especificamente ‘violência psicológica e social’ num caso de ‘risco elevado’”.
Como solução para o problema, Rui do Carmo, coordenador da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD), na entrevista que deu ao Público no dia 6 de fevereiro, aponta um conjunto de medidas, que aqui resumimos, por considerar serem importantes, que passam por simplificar as denúncias de VD, identificar precocemente as situações de VD, melhorar a coordenação dos vários serviços e entidades, aplicar a lei da VD, identificar atempadamente o nível de risco das vítimas, capacitar as forças de segurança para protegerem as vítimas, aplicar medidas de contenção do agressor, formar todos os profissionais e melhorar a intervenção das situações de VD.
Para além dos caminhos que apontados por Rui do Carmo, a UMAR refere a “falta de prevenção e de sensibilização para inverter uma realidade chocante” e a aplicação de penas mais duras é a propostas do Observatório de Mulheres Assassinadas.
E por falar em penas, mas não duras, mas sim leves, na semana passada ficámos também a saber que “o Conselho Superior de Magistratura (CSM) decidiu aplicar uma advertência registada ao juiz Neto de Moura – responsável por redigir dois acórdãos em que citava a Bíblia para justificar a manutenção de penas suspensas por violência doméstica”.
Mas a pergunta que mais se ouviu, foi: “O que continua a falhar?”. Sendo disso exemplo o artigo do I de 6 de fevereiro, onde após ouvir especialistas na matéria e consultado os documentos mais recentes que se debruçam sobre o fenómeno da VD, conclui pela necessidade do reforço da formação dos profissionais da 1ª linha das Forças de Segurança (FS), nomeadamente na receção e atendimento da vítima, na recolha de prova, na avaliação do risco e na definição e implementação do plano de segurança.
Tendo em conta a indignação que a ocorrência do Seixal gerou em toda a sociedade, a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro declarou mostrar-se preocupada, tal como a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, que defendeu “que só apostando na formação, especialmente na educação dos jovens para a cidadania, se conseguirá combater os crimes de violência doméstica”.
Este assunto não só preocupa o 1º Ministro, como o envergonha, tendo por isso mandado reunir os mais altos responsáveis pela prevenção e combate à VD, cuja reunião ocorreu no dia 7 de fevereiro e onde estiveram presentes a Procuradora-Geral da República (PGR), o Coordenador da EARHVD e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), e resultado um comunicado, que deu conta das decisões tomadas, de onde se destaca a criação de mais uma equipa técnica multidisciplinar, coordenada pelo Coordenador da EARHVD, o alargamento de gabinetes de apoio às vítimas de VD a todos os Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP) e o reforço da formação, articulação e cooperação entre FS, magistrados e organizações que trabalham na prevenção e combate à VD.
Onde não falta cooperação, é entre o Governo e o Presidente da República, porque após as ONG se terem queixado de não terem sido convidadas para a reunião marcada pelo Governo, foram as mesmas chamadas pelo Presidente da República no dia 8 de fevereiro, para outra reunião, verificando-se assim que todos as instituições com responsabilidades no combate á VD tiveram oportunidade de dar conta, ao mais alto nível, do que vai mal na prevenção e na proteção das vítimas de VD.
Apesar deste aparente falhanço no combate à VD, esta semana as FS detiveram cinco homens por violência doméstica, tendo dois sido apanhados em flagrante delito, um enquanto ameaçava a mulher com uma faca e o outro com uma arma de fogo.
Chegados a este ponto, e sem ninguém assumir culpas e onde só vemos dedos apontados, quase sempre às FS e aos tribunais, consideramos que a falha está no sistema que não existe, por isso a nossa proposta, passa pela criação de um Sistema de Prevenção e de Proteção das Vítimas de VD (SPPVD), para de um modo coordenado, possam todas as instituições articular-se na prevenção e na proteção das vítimas de VD, tal como acontece no Sistema de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, porque nos últimos 20 anos já deu suficientes provas da sua eficácia.
Para a implementação do SPPVD, propomos a criação das Comissões Multidisciplinares de Avaliação de Risco da Violência Doméstica (CoMARVD), á semelhança das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (CPCJ), e tal como existem no Reino Unido, com a denominação de Multi-Agency Risk Assessment Conferences (MARAC), sendo as mesmas constituídas por representantes de todas as instituições e organizações que lidam com o fenómeno da VD (educação, segurança social, saúde, FS, autarquias, ONG, etc.), debaixo da supervisão do MP, posicionando-se a sua intervenção entre as entidades de primeira linha e os tribunais, tal como acontece com as CPCJ.
As CoMARVD, teriam assim muito mais poderes do que os “gabinetes de apoio às vítimas de VD”, que agora serão criados em todos DIAP’s, tendo como principal tarefa a análise de todas as fichas de avaliação de risco elaboradas, em especial as de risco elevado, com a possibilidade de aplicar medidas urgentes de proteção das vítimas e de afastamento dos agressores, em menos de 72 horas, com posterior sancionamento pelo tribunal, sendo remetidas as estas comissões cópia das fichas de avaliação de risco e um resumo da ocorrência, em simultâneo com o envio do auto de notícia para o MP.
As CoMARVD teriam ainda a possibilidade de aplicar a medida de proteção por teleassistência a todas as vítimas de VD, cuja avaliação de risco fosse elevada, bastando para o efeito, um despacho do(a) Presidente da CoMARVD, e não do juiz ou, durante a fase de inquérito, do Ministério Público, diminuindo-se assim a carga burocrática.
No que diz respeito ao Serviço de Teleassistência a Vítimas de VD (STVD), propomos que a responsabilidade pela sua operacionalização passe para as FS, deixando de estar debaixo da alçada da CIG e da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), não sendo esta proposta uma crítica à forma como ambas as instituições têm conseguido dar conta do recado, mas sim, porque quanto mais próximo tiverem as vítimas de VD das FS, mais rápido será a resposta destas às situações de emergência, eliminando-se os intermediários.
Pelo exposto, verifica-se que só a criação de um verdadeiro Sistema de Prevenção e Proteção das Vítimas de VD, se conseguirá pôr todas as instituições a trabalhar em conjunto e em articulação, de modo a inverter esta tendência crescente de homicídios em contexto de relações intimas, bem como reduzir o número de crimes de VD, que no ano passado registou 29.734 ocorrências, de acordo com a PGR.