Nas últimas décadas, o conceito de negacionismo tem estado sobretudo associado às alterações climáticas, onde a recusa em aceitar as evidências científicas sobre o aquecimento global, muitas vezes movida por interesses económicos ou ideológicos, conduziu a atrasos significativos na adoção de políticas ambientais eficazes, sendo que de forma análoga, começa a emergir em Portugal, e noutros países, um fenómeno que podemos denominar de negacionismo securitário.
Coronel da GNR, Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna
Dirigente da Associação Nacional de Oficiais da Guarda
A história mostra-nos que, quando a ciência é desvalorizada ou ignorada, as sociedades arriscam-se a ultrapassar pontos de não-retorno, tornando irreversíveis os danos quer ambientais, quer sociais e económicos, pelo que tal como os negacionistas climáticos minimizam ou negam a crise ambiental, os negacionistas securitários desvalorizam o aumento da criminalidade e da violência, argumentando que os dados são irrelevantes, que os fenómenos são pontuais ou que a perceção da insegurança resulta apenas de construções mediáticas, colidindo essa postura com a evidência científica recolhida pelas ciências sociais, pela criminologia e pela estatística criminal.
A ciência tem como principal função observar, medir e interpretar a realidade de forma sistemática e crítica, pelo que no caso das alterações climáticas, foi graças à investigação científica que se identificaram tendências inequívocas, a subida da temperatura média global, o degelo acelerado, a acidificação dos oceanos e o aumento de fenómenos climáticos extremos, e no domínio da segurança, a ciência também fornece dados concretos, tais como estatísticas de criminalidade, análises criminológicas, estudos sociológicos sobre exclusão social, drogas, violência urbana e dinâmicas criminais.
Em ambos os casos, os negacionistas tentam desqualificar essa base científica, cujo argumento comum é que “os dados não são confiáveis” ou que “há interesses por trás da interpretação dos números”, concluindo-se, no entanto, que sem ciência, apenas restam perceções individuais ou discursos ideológicos, que raramente refletem a magnitude e complexidade dos fenómenos criminais.
O negacionismo climático atrasou a implementação de medidas de mitigação durante décadas, cujo conceito de ponto de não-retorno é amplamente usado para designar o limiar após o qual as alterações climáticas se tornam irreversíveis, independentemente das políticas adotadas posteriormente, tendo esse atraso custado caro, porque hoje as ondas de calor, as secas, as inundações e os incêndios florestais atingem proporções inéditas e o que antes era previsão tornou-se realidade, cuja lição é clara, quando a ciência é ignorada, o preço é pago pela sociedade no futuro.
Em Portugal, o debate sobre a criminalidade e a segurança pública atravessa um processo semelhante ao que ocorreu com o clima, existindo vozes que insistem que a violência e a criminalidade “não estão a aumentar”, que “tudo se mantém dentro da normalidade”, ou que “as perceções de insegurança são construções mediáticas”.
Contudo, os dados estatísticos e os estudos de campo indicam uma tendência preocupante: O aumento dos crimes violentos e graves, incluindo agressões, roubos e homicídios em contextos não comuns no passado; A maior incidência da criminalidade juvenil, associada à exclusão social, consumo de substâncias e ausência de estruturas de integração; O crescimento da violência organizada e do tráfico internacional, explorando vulnerabilidades nas fronteiras e nos sistemas urbanos, e; A perda de confiança nas instituições de segurança e justiça, quando a perceção pública não encontra resposta efetiva das autoridades.
Tal como no caso climático, o negacionismo securitário não é apenas uma posição de ignorância, mas muitas vezes uma postura politizada ou ideológica, que teme que a assunção da gravidade da crise securitária legitime medidas consideradas “excessivas” ou “conservadoras”, pelo que negar a realidade não impede a criminalidade de crescer, apenas limita a capacidade de resposta atempada.
Em segurança, o conceito de ponto de não-retorno também é aplicável, porque uma sociedade ao permitir a degradação progressiva da ordem pública pode atingir um limiar em que a recuperação se torna extremamente difícil, cujos exemplos internacionais demonstram este risco, tais como cidades onde os criminosos controlam parte do território, países onde a confiança no sistema judicial colapsou e regiões onde a violência é endémica.
Em Portugal, ainda não se está perante esse cenário extremo, mas sinais de alarme começam a ser evidentes: A normalização da violência em determinados bairros e espaços públicos, gerando zonas de exclusão social e insegurança difusa; A erosão da confiança nas forças de Segurança (FS), devido a perceções de ineficácia ou de falta de meios, e; A polarização política em torno do tema da segurança, o que dificulta consensos estratégicos de longo prazo. Pelo que ignorar estes sinais é semelhante a desconsiderar as primeiras provas do aquecimento global, um erro histórico com custos sociais elevados.
Se tanto nas alterações climáticas como na segurança o risco é ultrapassar um ponto de não-retorno, a única forma de evitar esse desfecho é adotar políticas públicas fundamentadas em evidência científica e isso implica: A recolha rigorosa de dados sobre criminalidade e violência, com metodologias comparáveis e transparentes; A elaboração de estudos interdisciplinares que cruzem criminologia, sociologia, psicologia e economia, para compreender as raízes estruturais do fenómeno; O planeamento estratégico de longo prazo, evitando respostas apenas reativas ou motivadas por ciclos eleitorais; O investimento em prevenção, através de políticas sociais, educativas e de integração, mas sem descurar a repressão eficaz do crime organizado e violento, e; A comunicação pública responsável, capaz de informar sem alarmismo, mas também sem cair no negacionismo.
A ciência, neste contexto, não é apenas um instrumento de diagnóstico, mas também um guia para a ação racional, afastando tanto a tentação alarmista como a armadilha negacionista, pelo que a analogia entre o negacionismo climático e o negacionismo securitário permite compreender um padrão comum, a recusa em aceitar a realidade descrita pela ciência, muitas vezes em nome de interesses políticos ou ideológicos, conduzindo a atrasos na resposta coletiva, sendo que tanto no ambiente como na segurança, esse atraso pode levar a sociedades a ultrapassar pontos de não-retorno, em que as consequências se tornam irreversíveis ou de difícil reparação.
Portugal não está condenado a um cenário de insegurança incontrolável, mas os sinais de alerta são cada vez mais claros, pelo que tal como no debate climático, a negação do problema não o fará desaparecer, pelo contrário, aumentará a sua gravidade, sendo que reconhecer os factos, confiar na ciência e adotar políticas públicas de segurança sustentadas nas evidências são passos indispensáveis para evitar que a violência e a criminalidade se tornem um traço estrutural da sociedade portuguesa.
Se aprendermos a lição do clima, compreenderemos que o tempo para agir é agora, onde cada ano de inação aproxima-nos do ponto sem retorno, tanto ambiental como securitário, e uma vez ultrapassado esse limiar, já não se trata de evitar o problema, mas apenas de tentar sobreviver às suas consequências.
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