DECLARAÇÃO DE IMPACTO DA VÍTIMA


O ano de 2023 terminou com 30.279 crimes de Violência Doméstica (VD) denunciados à GNR e à PSP de acordo com o Portal da Violência Doméstica da responsabilidade da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), de onde resultou a morte a 17 mulheres, três homens e duas crianças.

Rogério Copeto

Coronel da GNR

Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna

Apesar do número de 30.279 crimes não ser ainda o final, porque de acordo com a CIG, o número de ocorrências participadas à PSP e GNR pode ser superior face aos valores apresentados, devido à existência de autos elaborados no ultimo trimestre do ano de 2023, e que foram contabilizados em 2024, contata-se que comparando com o ano de 2022, as denuncias sofreram um ligeiro decréscimo de 110 crimes.

Vários foram os artigos que dediquei ao fenómeno da VD nos últimos 10 anos, tendo inclusive proposto algumas medidas que considero muito contribuiriam, para a prevenção e combate à VD, cuja primeira, seria a atribuição da responsabilidade pela operacionalização do Serviço de Teleassistência a Vítimas de VD (STVD) às Forças de Segurança (FS), deixando de estar debaixo da alçada da CIG e da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), não sendo esta proposta uma crítica à forma como ambas as instituições têm conseguido dar conta do recado, mas sim, porque quanto mais próximo tiverem as vítimas das FS, mais rápido será a resposta destas às situações de emergência, eliminando-se os intermediários, tendo em conta que a resposta às chamadas das vítimas e dada pelas FS, depois de passarem pela CIG e pela CVP.

Uma segunda medida seria a criação de Comissões Multidisciplinares de Avaliação de Risco da Violência Doméstica (CoMARVD), á semelhança das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (CPCJ), e tal como existem no Reino Unido, com a denominação de Multi-Agency Risk Assessment Conferences (MARAC), sendo as mesmas constituídas por representantes de todas as instituições e organizações que lidam com o fenómeno da VD (educação, segurança social, saúde, FS, autarquias, ONG, etc.), debaixo da supervisão do Ministério Público (MP), posicionando-se a sua intervenção entre as entidades de primeira linha e os tribunais, tal como acontece no Sistema de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.

As CoMARVD, que são muito muito mais do que “gabinetes de apoio às vítimas” existentes nalguns Departamentos de Investigação e Ação Penal, terão como principal tarefa a análise de todas as fichas de avaliação de risco, elaboradas pelos intervenientes das ocorrências de VD, em especial as de risco elevado, com a possibilidade de aplicar medidas urgentes de proteção das vítimas e de afastamento dos agressores, em menos de 72 horas.

Para além destas duas medidas propomos, no presente artigo, a introdução no nosso ordenamento jurídico da Declaração de Impacto da Vítima, por ser mais um instrumento que ajudará as vítimas de crime em Portugal, não só as vitimas de VD, e cujo uso é pratica corrente nos sistemas legais anglo-saxónicos, nomeadamente Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia, com o nome “Victim Impact Statement”, apesar de ter diferentes procedimentos em cada um dos países referidos.

O “Victim Impact Statement” é um documento no qual uma vítima de crime descreve o impacto físico, emocional, financeiro e psicológico que o crime teve sobre ela e seus entes queridos, sendo frequentemente utilizado durante o julgamento do agressor, fornecendo ao Tribunal informações adicionais para considerar a determinação da medida da pena, tendo como objetivo dar voz à vítima e permitir que as suas perspetivas e experiências influenciem o resultado do julgamento.

Conforme já referido, este conceito começou a ser formalmente integrado nos sistemas legais anglo-saxónicos nas últimas décadas do século XX, sendo a sua introdução e aceitação dessa prática variado de acordo com as jurisdições, onde nos Estados Unidos, por exemplo, a ideia começou a ganhar mais destaque na década de 1970 e foi formalizada em outras jurisdições nos anos seguintes, como no Canadá, onde o uso do “Victim Impact Statement” se tornou mais comum a partir da década de 1980, pelo que cada país foi adotando essa prática em diferentes alturas, e as regras específicas sobre como as mesmas são feitas e utilizadas, também variam de país para país.

Em Portugal, não há um equivalente direto ao “Victim Impact Statement” como é conhecido nos sistemas legais já referidos, como nos Estados Unidos ou no Canadá, no entanto, em Portugal, as vítimas têm o direito de ser ouvidas em qualquer momento do processo crime.

O Código de Processo Penal prevê assim a audição da vítima em várias fases do processo, permitindo que a mesma expresse as suas opiniões, preocupações e experiências, embora não seja exatamente o mesmo que um “Victim Impact Statement”, sendo a participação das vítimas no processo judicial em Portugal reconhecida e facilitada de acordo com as disposições legais em vigor.

O “Victim Impact Statement” permite que a vítima se expresse diretamente sobre o impacto do crime na sua vida, proporcionando um sentido de empoderamento, fornecendo ao Tribunal informações detalhadas sobre o impacto físico, emocional, financeiro e psicológico do crime, que podem influenciar a decisão judicial, ajudando o Tribunal a considerar a extensão do dano causado ao decidir sobre a sentença, tornando o processo mais completo e equitativo.

O “Victim Impact Statement” reconhece e valida o sofrimento da vítima, dando-lhe uma presença mais significativa no processo judicial, contribuindo para abordagens de justiça mais orientadas para a restauração, permitindo que vítima e agressor percebam o impacto e as consequências do crime.

Estas vantagens do “Victim Impact Statement” variam de acordo com as práticas legais em diferentes países, mas em geral, procuram equilibrar a justiça ao levar em consideração não apenas o crime em si, mas também o seu impacto nas vítimas, sendo por isso importante redigir corretamente o “Victim Impact Statement”, porque se trata de um documento de natureza pessoal e emocional, devendo por isso serem seguidas as orientações e articulado que seguir identificamos.

O documento inicia com uma breve Introdução que deverá conter a identificação da vítima, do processo e a sua relação com o caso específico. Seguidamente deverá ter uma parte sobre a descrição do impacto, onde deve ser detalhado o impacto do crime nas suas várias vertentes, como física, emocional, psicológica e financeira, devendo ser utilizados exemplos específicos para ilustrar o impacto real, tornando a declaração mais convincente.

No terceiro ponto faz-se referência às consequências a longo prazo, descrevendo-se as possíveis consequências duradouras do crime e como ele afetou o quotidiano da vítima e das suas relações com terceiros. No quarto ponto devem constar os prejuízos financeiros, incluindo-se todas as informações, nomeadamente despesas médicas ou perda de vencimento. No quinto ponto são listadas todas e quaisquer necessidades de assistência, como apoio psicológico, médico ou financeiro, que a vítima possa ter. No sexto ponto devem constar as expressões emocionais, não devendo a vítima inibir-se em expressar emoções e sentimentos, pois isso pode adicionar uma dimensão humana ao documento. Terminando-se a declaração com um pedido claro ao tribunal sobre o que a vítima considera uma sentença justa. E como todos os documentos, o “Victim Impact Statement” deve ser revisto cuidadosamente, para garantir clareza e precisão e se possível, pedir a orientação de um jurista para apoio na análise do documento.

Pelo exposto, consideramos que o “Victim Impact Statement” poderia ser um documento a introduzir no ordenamento jurídico português, porque noutros países se tem revelado imprescindível na aplicação da justiça, ajudando o Tribunal a compreender o impacto que o crime teve sobre a vítima antes de tomar uma decisão, sendo também uma oportunidade importante para que a sua voz seja ouvida e para partilhar a sua experiência de uma forma que lhe seja empoderadora.


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