Opinião (Rogério Copeto/ Oficial da GNR): ATROPELAMENTO E FUGA: O CRIME PERFEITO?.


O título do artigo termina com uma interrogação. Será o crime de homicídio por atropelamento, o crime perfeito? Conforme sempre refiro, não há crimes perfeitos, há boas ou más investigações, mas no que diz respeito aos atropelamentos, existem algumas variantes, que o podem transformar no crime perfeito.

Rogério Copeto

Tenente-Coronel da GNR

Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna

Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação

Durante a minha carreira profissional confrontei-me infelizmente com várias situações de atropelamento e fuga, de onde resultaram vítimas mortais, sendo que recordo particularmente de duas, porque foram resolvidas e conseguiu-se identificar o condutor que causou o atropelamento, sabendo no entanto que nem sempre é assim.

Trago este assunto ao LN por motivo da notícia do Correio da Manhã de 27 de janeiro com o título “GNR registou mais de 3.600 atropelamentos de peões nos últimos dois anos”, onde é referido que “a Guarda Nacional Republicana (GNR) registou entre 2015 e 2016, em Portugal continental, 3.618 atropelamentos de peões, uma média de cinco atropelamentos por dia”.

O Público na sua edição de 27 de janeiro também abordou o assunto no artigo “GNR registou mais de 3.600 atropelamentos de peões nos últimos dois anos”, referindo que “a GNR considera que os atropelamentos de peões têm um impacto significativo na sinistralidade rodoviária e que os atropelamentos seguidos de fuga do condutor têm uma incidência elevada”. O Tenente-Coronel Pereira Leal, da GNR sobre o assunto refere que “em relação às situações em que os condutores fogem do local do acidente e não são identificados, que acabam por cometer dois crimes: atropelamento e omissão de auxílio”. Aquele oficial da GNR refere ainda que os atropelamentos são uma ocorrência onde raramente existem testemunhas, dificultando a sua investigação, que recorre basicamente à peritagem das provas físicas, deixadas no local pela viatura em fuga, como por exemplo vidros das ópticas, espelhos e, às vezes, o símbolo da marca do veículo.

Também o JN de 27 de janeiro dá destaque ao assunto no artigo “Média de cinco atropelamentos por dia”, tendo no entanto na sua edição de 28 de janeiro desenvolvido o tema no artigo com o título “GNR procura 12 condutores que mataram e fugiram” (só disponível na versão em papel), onde é referido que estão a ser investigados pela GNR doze casos de atropelamentos mortais ocorridos em 2015 e 2016, em que os condutores ainda não foram identificados, onde novamente o Tenente-Coronel Pereira Leal, refere que a maior especificidade da investigação deste tipo de acidentes é que “raramente existem testemunhas”, porque com a morte da vítima, tudo se torna mais difícil, e quando existem testemunhas, não conseguem recordar com nitidez o que aconteceu, devido à rapidez como tudo ocorre. Por isso a investigação para além de recorrer quase sempre à recolha de vestigios que ficam no local do acidente, questionam as oficinas localizadas nas proximidades do acidente, sobre pedidos de reparação.

Da leitura dos artigos atrás referidos conclui-se que dos 3.618 atropelamentos registados pela GNR resultaram 119 vítimas mortais, sendo o dado mais relevante os nove atropelamentos com fuga do condutor em 2015 e os treze em 2016, tendo a GNR em 2015 conseguido identificar um condutor e nove em 2016, ficando ainda doze dessas ocorrências “sem que houvesse detidos ou os autores fossem identificados”, concluindo-se que a GNR só conseguiu identificar o condutor em 45% dos atropelamentos com fuga, sendo essa uma taxa muito elevada, seja qual for o crime, aumentado a gravidade quando se trata de crimes graves, como o homicídio e a omissão de auxilio.

Conforme referi no inicío, foram duas as situações de atropelamento e fuga que recordo particularmente, em toda a minha carreira profissional, tendo o primeiro ocorrido em 2001, ano em que assumi as funções de Comandante do Destacamento Territorial de Fronteira, quando ainda muito fresco nesses assuntos, fui confrontado com um atropelamento de um ciclista, seguida de fuga da viatura, no qual resultou a morte do condutor da bicicleta.

O acidente ocorreu numa estrada secundária, sem bermas, vala funda e no final do dia, quando a luz já era pouca. A GNR foi alertada para a ausência de um idoso que todos os dias se deslocava na sua bicicleta até à sua horta, regressando a casa ao fim do dia, pelo que, quando os seus familiares, verificaram que o idoso, à hora de jantar ainda não tinha chegado, alertaram as autoridades para o seu desaparecimento, que após percorrerem o trajeto percorrido diariamente pelo idoso, foi o mesmo encontrado numa vala ao lado da sua bicicleta, já cadáver, sendo a causa provável da morte, um traumatismo craniano, por embate da cabeça numa pedra.

Parecendo à primeira vista um despiste de um ciclista, sem intervenção de terceiros, verificou-se através dos vestigios deixados no local, que estaria envolvida uma segunda viatura, que colidiu com a bicicleta, projetando-a e ao seu condutor para a vala, que acabou por bater com a cabeça numa pedra, vindo a falecer por falta de socorro atempado.

Tendo a certeza da existência de uma viatura que colidiu com o ciclista, as investigações iniciaram-se imediatamente com o objectivo de localizar essa viatura, por suspeita que o seu condutor tivesse praticado, dois crimes: Homicídio por negligência, em resultado de acidente de viação e; Omissão de auxílio. Sendo o primeiro passo da investigação proceder à identificação da marca e modelo da viatura, através dos pequenos pedaços do farol da frente da viatura, únicos vestigios deixados no local, e o segundo proceder à identificação de todas as oficinas, existentes próximas do local do acidente, tendo numa dessas oficinas conseguindo-se recolher, no dia seguinte ao acidente, a informação que uma viatura ligeira de mercadorias, tinha estado a ser reparada na noite anterior, pelo que rapidamente se localizou o seu proprietário e procedeu à apreensão da sua viatura.

Facilmente e sem recurso a grandes tecnologias, se percebeu que a viatura tinha sido pintada e substituido o farol da frente, provando-se com pouca margem de dúvida, que estávamos perante a viatura interveniente no acidente, reforçado pelo facto de que o seu proprietário, realizava à semelhança da vítima, o mesmo percurso diariamente, dando inclusive boleia ao idoso e à sua bicicleta de regresso a casa, por serem vizinhos, tendo o suspeito após confrontado com as provas, acabado por confessar todos os factos.

O segundo atropelamento do qual me recordo aconteceu mais recentemente em 2013, estando eu neste caso, a desempenhar as funções de Oficial de Relações Públicas do Comando Territorial de Évora e por isso sido envolvido no processo de localização do condutor da viatura que colidiu com uma bicicleta. Da colisão resultou a morte do ciclista, tendo o condutor da viatura se colocado em fuga, e por ser necessário proceder à sua localização, foram para o efeito usados todos os recursos disponíveis, inclusivamente usando-se os Órgãos de Comunicação Social locais, para divulgação da ocorrência e alertar a população para a necessidade de comunicar à GNR toda e qualquer informação sobre a viatura interveniente na colisão com o ciclista.

Devido à necessidade de informação, que a mesma chegasse o mais rapidamente possível aos investigadores e sabendo que a internet é um aliado importante na divulgação de informação, não podendo esse facto ser descurado, foi usada a página de Facebook da GNR de Évora (GNR Alentejo). Tendo também sido solicitado aos OCS locais que divulgassem à população, o pedido para localizar a viatura interveniente no acidente, cujos únicos dados disponíveis era ser de cor branca, tendo assim vários portais digitais divulgado o pedido da GNR de Évora, sendo exemplo disso o portal Elvas.com.pt, que em de 17 junho de 2013 divulgou o pedido na peça “GNR procura viatura envolvida em acidente mortal próximo de Évora”, assim como o Noticias ao Minuto também no mesmo dia divulgou o assunto no artigo “GNR procura viatura envolvida em acidente mortal”, tendo também as rádios locais tido um importante papel, devido à rapidez com que a mensagem é passada, sendo disso exemplo o pedido feito pela Rádio Nota Antena na peça “Évora: GNR procura autor de acidente mortal”.

Em todas as peças era referido que a GNR procurava “um furgão de cor branca, que apresenta algum tipo de dano na parte da frente”, solicitando-se a quem tivesse conhecimento de viaturas com essas características, para dar conhecimento à GNR, tendo-se conseguido em muito pouco tempo, proceder à identificação da viatura e do seu proprietário, devido ao facto de um condutor, ao saber do ocorrido, ter contactado a GNR para dar conta que no local e à hora do acidente ter-se cruzado com uma viatura de iguais características.

Nos atropelamentos que tive oportunidade de dar a conhecer e de onde resultou a morte do atropelado foram investigados como homicídios por negligência, no pressuposto de não ter existido dolo, e por isso as penas aplicadas terem sido suspensas, no entanto se a investigação não for correctamente conduzida, poderemos não conseguir perceber, que eventualmente nalguma dessas situações terá existido dolo no atropelamento, disfarçado em acidente de viação, pelo que é importante as autoridades recorrerem a todos os instrumentos à sua disposição, para identificar não só o condutor, bem como para concluir, sem margem de erro, se se trata de um crime de homicídio doloso ou negligente, sendo este dado também importante nos 119 atropelamentos, em que resultaram vitimas mortais, registados pela GNR em 2015 e 2016

No entanto sabemos que existem doze condutores que ainda não foram identificados e que cometeram doze crimes de homicídio negligente ou doloso e doze crimes de omissão de auxílio, preocupando-nos por isso, existirem doze criminosos que ainda não responderam pelas suas condutas, sendo o facto do número de condutores identificados ter aumentado de 2015 para 2016, o único dado positivo neste assunto.


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