Opinião (José Lúcio/ Juiz): A sombra da vara torta.
Não se endireita, pois claro. A teimosia em endireitar a sombra de uma vara torta não é obviamente indício de sensatez. Todavia não é coisa invulgar em política.
(Juiz Presidente da Comarca de Beja)
Assim acontece naquelas situações em que repetidamente se anunciam medidas que deixam intocados os problemas que se propõem resolver.
Passam-se anos e décadas a falar da magnitude do problema e na urgência da solução e vai-se a ver ao fim dessa eternidade o essencial permanece imutável. As mudanças, as reformas, as medidas, como os discursos, nunca atingiram o essencial. Tudo andou à volta da sombra, e a vara continuou torta.
Em Portugal esta observação reveste particular acuidade. Andamos há tempos sem fim a debater-nos com as mesmas questões. Vejam-se as proclamações e programas de todas as revoluções dos últimos duzentos anos.
Pelo que particularmente me toca, lembro-me muitas vezes da impressão que me fez a leitura do “Portugal Contemporâneo” de Oliveira Martins. Eu era muito novo, e acreditava que haveria coisas novas no mundo. Espantosamente, a vida política do país da minha juventude surgia-me idêntica nos hábitos e nos vícios ao que tinha sido mais de cem anos antes. O Portugal contemporâneo estava já no “Portugal Contemporâneo”!
Desde então, as semelhanças só se acentuaram. Os partidos, os políticos, a corrupção, o vazio de ideias e de ideais, tudo sugere o Portugal oitocentista descrito por Oliveira Martins. Há na galeria de personagens de Eça gente que identificamos todos os dias nos noticiários, e as críticas de Guerra Junqueiro ao sistema governativo e parlamentar parecem hoje tão certeiras como na sua época.
Hoje, que sou menos jovem, acredito que é inteiramente verdadeira a observação de Salazar: “os homens mudam pouco e então os portugueses quase nada”. E exaspera-me a constatação. Não é que eu gostasse de ver os portugueses menos portugueses (a identidade é que nos identifica, como diria o outro). Mas, caramba, ao menos que fosse possível encontrar soluções para os velhos problemas e passar decididamente a enfrentar os novos.
Estas generalidades ajudam a compreender melhor o que se vai passando com o nosso sector, a Justiça. Em escala menor, é o mesmo fenómeno. Andamos há décadas a ouvir falar em reformas da Justiça, e elas lá aparecem, constantemente, embaladas por aquela crença mágica que rodeia o Diário da República (acredita-se que a letra do DR é mais forte que o mundo, e que quem dominar o DR domina a realidade).
Assim, é legislação sobre legislação, reformas e contrarreformas, alterações e reversões, códigos em série e revisões às dezenas, sopa de letras com regularidade roçando o frenético. Como pano de fundo, a realidade ri-se e permanece.
Porém, ao mesmo tempo, de orçamento em orçamento é mais flagrante o desinvestimento na área da Justiça. Nas pessoas, nos equipamentos, nas infraestruturas. Tudo isso é fundamental, e pressuposto para o resto. Pode parecer coisa desprezível, ou pelo menos pouco entusiasmante, tratar dos edifícios, dos computadores, do papel, ou até das carreiras do pessoal – mas sem isso não adianta lançar cortinas de boas palavras.
O enquadramento normativo pode ser brilhante, mas não dispensa a necessidade de cuidar da realidade subjacente. As leis podem ser muitas, belas e sábias, mas se os tribunais estiverem condenados a funcionar em pardieiros decrépitos, com material escasso e obsoleto, e lá dentro gente pouca, cansada e desmotivada, a esforçar-se por cumprir bem contra todas as probabilidades, então dificilmente a administração concreta da Justiça contribuirá para conferir ao Poder Judicial o prestígio e a autoridade próprios de um dos poderes do Estado.
(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)