Opinião (José Lúcio/ Juiz): Alentejo, Alentejo!


O grande investimento público feito na região alentejana no último século foi a Barragem de Alqueva. Desconfio seriamente que só a fizeram aqui porque não conseguiram fazê-la em Lisboa.

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

O desabafo vem a propósito do ambiente de indignação que por cá se vive. Os alentejanos sentem que são negligenciados pelo poder central, porque são poucos e quase irrelevantes em termos eleitorais.

Não me parece que exagerem nessa sensação de humilhação e impotência. O abandono e o desprezo com que o poder central trata o Alentejo ressaltam a cada nova opção política.

Estão nesta altura em foco os problemas de saturação do Aeroporto de Lisboa, e a necessidade daí decorrente de o país contar com um novo aeroporto. Pois o resultado tem sido impressionante: gastaram-se centenas de milhões num fantasmático Aeroporto da Ota, gastam-se outros tantos milhões em polémicas e estudos sobre aeroportos a fazer em Rio Frio ou no Montijo.

Todo o esforço das entidades responsáveis parece concentrar-se num ponto único: Beja é que não. O aeroporto até está feito, que chatice –  é um problema difícil de resolver. Mas quando falam nesse problema querem referir-se à dificuldade em encontrar a forma de o encerrar definitivamente, não o modo de o aproveitar e viabilizar – isso é que não.

Debate-se agora com especial acuidade a questão das ferrovias. Eu, que não sou velho, conheci os comboios a ligar Portalegre e Estremoz, Évora e Reguengos, Évora e Mora, Beja e Serpa, etc. Podia viajar-se desde o Norte Alentejano ao Algarve sempre em comboio. Andei entre Portalegre, Estremoz, Évora, Viana, Cuba, Beja… Neste momento já não são só os velhos ramais que foram abandonados. Até a linha que nos conduzia ao Algarve está em risco de total encerramento.

Equacionando com seriedade este problema, há que afirmar que não é apenas Beja que está na perspectiva de ficar sem comboios – é um terço do país em que ostensivamente se deixa de fora a opção ferroviária. E não será certamente por a região ser privilegiada ao nível rodoviário, porque a verdade é que se caminho de ferro não há as estradas também são uma miséria.

O que foi feito nestas últimas décadas para cumprir as promessas sobre o IP8 ou o IP2? São décadas, senhores!

Quando eu estava em Portalegre (cidade que me é particularmente querida) decorriam já, anunciados com pompa, concursos e empreitadas que visavam tornar realidade o IP2. Pois ainda hoje, passados trinta anos, não existe nenhum IP a ligar as três principais cidades alentejanas. Em longos troços o tal itinerário principal arrasta-se pelas velhas estradas nacionais, atravessando penosamente as cidades como acontece em Estremoz e Évora (a Avenida São João de Deus é uma estrada nacional por onde tem que passar todo o tráfego automóvel, de ligeiros e pesados – e tem mesmo a particularidade única de atravessar um Hospital pelo meio).

As grandes obras concretizadas no plano rodoviário são duas autoestradas que atravessam o Alentejo, uma de lado a lado e outra de cima a baixo. Olhando para elas não há que enganar. Uma foi feita para que os espanhóis possam confortavelmente visitar Lisboa e os lisboetas possam rapidamente dar um salto a Madrid, e a outra foi construída para que os veraneantes do Norte e da região alfacinha possam sem transtornos chegar até ao Algarve. Em qualquer dos casos, sem paragens incómodas no Alentejo.

Fora destas tais duas autoestradas, para os estranhos fazerem as travessias do deserto, o resto da rede rodoviária da região acusa o abandono. É um escândalo verificar as condições de deslocação entre Beja e Moura, ou entre Beja e Odemira, ou ir de Évora a Sines.

Diga-se claramente: a cada nova torrente de discursos sobre a desertificação do interior tem-se seguido invariavelmente o anúncio de qualquer coisa mais que vai fechar. E fechando tudo não é possível esperar que as pessoas aqui continuem. Nas mais recentes eleições autárquicas constatei que só no distrito de Beja já temos dois concelhos com menos de mil eleitores. Sou de uma terra que deve ter mais gente na Suíça do que na aldeia.

Quem for capaz de imaginar o que isto significa, que pense no futuro. O passado não encoraja. A Barragem de Alqueva de que falei no início foi projectada e apresentada ao público ainda nos anos cinquenta do século XX (pelos engenheiros Manuel Rafael Amaro da Costa e Armando da Palma Carlos, se a memória não me engana). Demorou as muitas décadas que se seguiram. Do plano de rega do Alentejo, ambicioso e enorme projecto delineado nessa época, partes essenciais continuam por realizar. A peça fundamental do sistema no distrito de Portalegre seria a Barragem do Pisão, o grande reservatório para servir essa vasta área. Como alguém me recordava outro dia, está prometida há setenta anos. Não há neste momento sequer a perspectiva de quando virá a ser efectivamente construída.

De Portalegre lembro ainda o exemplo do centro de instrução de praças da GNR, que ainda ali funciona. De vez em quando surge nas notícias a intenção proclamada de o transferir para a zona de Lisboa. Como se em Belas ou Queluz fosse essencial a instalação dessa unidade, e pelo contrário em Portalegre não assumisse relevância decisiva a sua manutenção. Tenho que dizer que não me espanta. Num país que se desejasse equilibrado seria normal que os quartéis alojados na capital fossem deslocados para as zonas deprimidas do interior, entre nós até esse estabelecimento de ensino vital para manter alguma vida em Portalegre (terra onde tudo foi fechando, do têxtil à cortiça) ameaça agora ir-se embora.

Vou terminar, que o discurso vai longo. Um amigo dado à ironia dizia-me há anos, numa ocasião em que se elogiava a beleza e harmonia do Alentejo e a aparência de preservação que tudo mantinha por aqui, que não estranhava isso visto que não se fazia cá nada há uns quinhentos anos. Passados anos, tenho que dizer que me angustia este olhar – exteriormente tudo parece manter a mesma quietude serena, das casas caiadas e das vilas tranquilas, mas por dentro receio cada vez mais ver instalados o vazio e a ruína.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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