Opinião de Rogério Copeto: MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA, PERSEGUIÇÃO E CASAMENTO FORÇADO


A Assembleia da República aprovou na última 4ª-feira, a Lei n.º 83/2015 de 5 de agosto, que altera o Código Penal pela 38º vez, com o objectivo de autonomizar o crime de Mutilação genital feminina, de criar os crimes de Perseguição e Casamento forçado e de alterar os crimes de Violação, Coação sexual e Importunação sexual, em cumprimento do disposto na Convenção de Istambul e entra em vigor no dia 5 de Setembro.

Roger Copeto_800x800Rogério Copeto

Tenente-Coronel da GNR, Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna

Chefe da Divisão de Ensino/ Comando da Doutrina e Formação

A mutilação genital feminina é a remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos, sendo sempre removido o clítoris e o prepúcio clitoriano e, na forma mais grave, a remoção dos grandes e pequenos lábios e encerramento da vulva (infibulação), para além de ser uma grave ofensa à integridade física das jovens mulheres que se sujeitam ao ritual, não raras vezes resulta na sua morte.

Assim, esta prática foi agora tipificada como um crime autónomo no nosso Código Penal, tendo sido incluído um novo artigo na parte “Dos crimes contra a integridade física”. Este novo crime com o Artigo 144.º-A tem como epigrafe “Mutilação genital feminina” e pune com pena de prisão de 2 a 10 anos “Quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas“. Os atos preparatórios deste novo crime também são punidos com pena de prisão até 3 anos.

Apesar de esta prática no passado poder ser punida pelo crime de ofensas à integridade física, os seus autores não estavam a ser responsabilizados, pelo facto deste crime ser semipúblico e por necessitar de ser formalizada uma queixa, facto que raramente acontecia, sendo a denúncia quase sempre apresentada pelos Serviços de Saúde, quando a vitima ali comparecia para ser socorrida.

No entanto o Código Penal no seu artigo 149º apesar de continuar a considerar a integridade física livremente disponível, para efeito de consentimento, esse consentimento no caso das vítimas do crime do crime de Mutilação genital feminina, não exclui em caso algum a ilicitude do facto.

Na sua forma mais grave, a Mutilação genital feminina pode também ser considerada uma ofensa à integridade física qualificada, se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, sendo este punido com pena de prisão de 3 a 12 anos e no caso dos atos preparatórios, com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Também no que diz respeito à prescrição do crime e por força da alteração do artigo 118º, o crime de mutilação genital feminina, sendo a vítima menor, o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes da vitima perfazer 23 anos de idade.

Já no que diz respeito ao fenómeno do Stalking, esta conduta passa a ser crime e é incluído na parte “Dos crimes contra a liberdade pessoal”, sob a epígrafe de “Perseguição”, tendo sido criado o Artigo 154.º-A do Código Penal.

Esta conduta que a literatura denomina com o estrangeirismo Stalking, caracteriza-se por um conjunto de comportamentos, que consistem num assédio permanente, através de contactos com a vítima, vigilâncias, seguimentos e perseguições, causando grande desconforto na vítima e atentando contra a reserva da sua vida privada, sendo que na sua forma mais grave podem existir ofensas à integridade física e homicídios.

A criação deste novo tipo de crime vai permitir que os Stalkers não fiquem impunes, devido à dificuldade de no passado se enquadrar este comportamento noutros tipos de crimes, tais como a ameaça, a coacção ou a Violência Doméstica mesmo quando o perpetrador do Stalking era cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

O Stalking é agora punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal, e pratica este novo crime “Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar -lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”. A tentativa é punível e ao arguido podem ser aplicadas as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. Este novo crime é semipúblico porque o procedimento criminal depende de queixa.

Também o “Casamento forçado” passa a ser crime tipificado no artigo 154.º-B e à semelhança do crime de Perseguição pertence aos crimes contra a liberdade pessoale tem a seguinte redacção: “Quem constranger outra pessoa a contrair casamento ou união equiparável à do casamento é punido com pena de prisão até 5 anos”. Sendo também punidos os atos preparatórios, de atrair a vítima para território diferente do da sua residência com o intuito de a constranger a contrair casamento ou união equiparável à do casamento, com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias.

Os crimes de Perseguição e de Casamento Forçado podem ser agravados se a vítima ou a pessoa se suicidar ou tentar suicidar-se, sendo a punição, no caso do primeiro, ser de pena de prisão 1 a 5 anos, e no caso do segundo ser pena de prisão de 1 a 8 anos

No âmbito “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual” foi alterado o crime de “Coacção sexual” que é praticado porQuem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo, sendo punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”, sendo aumentada a moldura penal para as situações em que não seja usada violência na coacção, passando esse comportamento a ser punido com pena de prisão até 5 anos, quando antes era até 2 anos.

Também o crime de “Violação” foi alterado, sendo que pratica este crime “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

  1. a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
    b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.”
    Tendo este crime visto a moldura penal também aumentada, para quem o pratique sem violência, sendo punido com pena de prisão de 1 a 6 anos, quando antes era até 3 anos.

O último crime que foi alterado é o crime de “Importunação sexual”, que agora é praticado por “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. A principal alteração deste artigo foi a introdução como conduta criminosa, a “formulação de propostas de teor sexual”, tendo também sido aumentada a moldura penal que antes era punido com pena de multa até 120 dias.

Também no que diz respeito á apresentação da queixa para os crimes de coacção sexual e de violação, quando o procedimento depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe.

Como principal conclusão, verifica-se que esta 38º alteração ao Código Penal teve como principal objetivo dar cumprimento ao constante na Convenção de Istambul, de 11 de maio de 2011, no que diz respeito à inclusão na nossa legislação penal dos crimes atrás referidos.

A Convenção de Istambul é um instrumento internacional do “Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica” e foi aprovado pela Assembleia da Republica em 21 de janeiro de 2013, através da Resolução nº 4/2013.

Na referida resolução consta a necessidade dos Estados adotarem medidas legislativas para punir as condutas agora incluídas no Código Penal, mas a resolução propõe ainda a necessidade de adoção de outras medidas, nomeadamente no âmbito da Prevenção, referido-se a necessidade de serem adotadas as medidas necessárias para se promoverem mudanças nos padrões de comportamento socioculturais das mulheres e dos homens e prevenir todas as formas de violência abrangidas pelo âmbito de aplicação da Convenção, praticadas por qualquer pessoa singular ou colectiva. Devendo ainda ser adotadas medidas nas áreas da “Sensibilização”, “Educação”, “Formação de Profissionais”, implementar “Programas preventivos de intervenção e de tratamento” e promover a “Participação do setor privado e dos meios de comunicação social”. Também na vertente da Proteção e Apoio, é referido que deverão ser adotadas as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para proteger todas as vítimas de quaisquer novos atos de violência e em conformidade com o seu direito interno, as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para garantir a existência de mecanismos apropriados que permitam a todos os serviços estatais competentes, cooperarem eficazmente na proteção e no apoio das vítimas e das testemunhas de todas as formas de violência. Propondo-se ainda a implementação de medidas no âmbito da “Informação”, dos “Serviços de apoio geral”, da “Assistência em matéria de queixas individuais/colectivas”, dos “Serviços de apoio especializado”, das “Casas de abrigo”, das “Linhas de apoio telefónico”, do “Apoio às vítimas de violência sexual”, da “Proteção e apoio às crianças testemunhas”, da “Denúncia” e da “Denúncia pelos profissionais”.

É verdade que muitas das medidas propostas estão já implementadas, mas a aposta deve continuar a ser feita na Prevenção, sendo também o principal objectivo da criação de novos tipos de crime, dissuadir a sua prática.


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