Opinião (Rogério Copeto/ Oficial da GNR): HOMICÍDIOS EM RETROSPETIVA.


De acordo com a nova Portaria n.º 280/2016 de 26 de outubro a análise retrospetiva de um homicídio é a análise de um caso de homicídio em violência doméstica que reconstrua a perceção da vítima e do autor sobre os sistemas de prevenção, proteção, apoio e repressão da violência doméstica, o percurso de utilização, rejeição ou alheamento das respostas disponíveis, bem como das respostas concretamente dadas no caso pelos referidos sistemas.

COPETO ROGER_800x800Rogério Copeto

Tenente-Coronel da GNR

Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna

Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação

Conforme sabido a Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro é o regime jurídico de prevenção da violência doméstica, proteção e assistência às suas vítimas e constitui-se desde 2009 como o instrumento legal fundamental na protecção das vítimas de violência doméstica, tendo nessa altura tido como principal novidade a criação do “Estatuto de Vítima” para as vítimas de violência doméstica, sendo que a referida Portaria n.º 280/2016 de 26 de outubro, que entrou em vigor no passado dia 27 de outubro, tem como objeto a regulação do procedimento de análise retrospetiva das situações de homicídio ocorrido em contexto de violência doméstica, previsto no artº 4º-A da referida Lei, ficando essa análise a cargo da “Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica”, tendo este assunto sido já abordado anteriormente aqui no LN, no artigo denominado “Equipas de análise prospetiva em violência doméstica”.

O referido artº 4º-A, prevê no seu nº 1 que “os serviços da Administração Pública com intervenção na proteção das vítimas de violência doméstica realizem uma análise retrospetiva das situações de homicídio ocorrido em contexto de violência doméstica e que tenham sido já objeto de decisão judicial transitada em julgado ou de decisão de arquivamento, visando retirar conclusões que permitam a implementação de novas metodologias preventivas ao nível dos respetivos procedimentos”.

Assim, pretende-se proceder à análise de todos os homicídios, transitados em julgado, que tenham ocorrido em contexto de violência doméstica, com o objectivo de reduzir a incidência de homicídios relacionados com a violência doméstica e melhorar a prestação dos serviços de apoio às vítimas de violência doméstica e de recuperação dos agressores, sustentando essa análise numa filosofia de avaliação imparcial dos acontecimentos que antecederam o homicídio, visando unicamente identificar e recomendar melhorias nas respostas por parte das muitas instituições que compõem a rede de respostas à violência doméstica, monitorizando o progresso na implementação dessas recomendações, desenhando e divulgando orientações e boas práticas.

Este modelo, já implementado noutros países, tem em conta que as vítimas de homicídio em contexto de violência doméstica contactam várias e diferentes instituições antes da ocorrência da sua morte, devendo a celeridade e/ou qualidade das respostas das várias instituições da rede apoio, dever ser influenciada, tendo em conta a informação prestada pela vítima, para que a maior ou menor gravidade da primeira ocorrência não acabe em homicídio, sugerindo os vários estudos realizados e experiencias recolhidas, pela existência de certos indicadores, que revelam características mais preditivas que outros, tais como a violência física. Estes indicadores denominam-se factores de risco.

Também em Portugal já existem estudos exploratórios que tem a intenção de identificar quais os factores de risco, que mais se revelaram nas situações de ocorrência de homicídios, sendo exemplo o trabalho denominado “HOMICÍDIOS EM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – Análise Retrospetiva de Homicídios ocorridos em Relações de Intimidade” de 1 de novembro de 2013, da autoria de António Castanho, que procedeu à análise de 19 homicídios ocorridos entre 2009 e 2012, de um conjunto de cerca de 55 enviados pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, sendo que desses 55 casos, 40 ocorreram em relações análogas às dos cônjuges ou companheiros (incluindo ex-companheiros ou ex-cônjuges), 8 homicídios em relações de ascendentes/descendentes, 2 LGBT e em 5 dos casos a relação é desconhecida.

O referido trabalho concluiu que os fatores de risco de homicídio mais registados nos casos estudados foram em primeiro lugar a existência de episódios anteriores de violência e stalking, em segundo lugar o aumento da intensidade ou da gravidade da violência no mês que antecedeu o homicídio e em terceiro lugar o acesso e/ou o uso a armas de fogo em ocorrências anteriores, tais como ameaças, verificando que a existência destes indicadores, nem sempre foram reconhecidos como sinais de alarme, conforme refere o autor “que por vezes, somos ineptos, em ‘ligar os pontos’ e vemos apenas incidentes isolados ou marcadores individuais, ao invés de padrões de comportamento”.

Caberá agora à “Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica”, constituída por um coordenador do Ministério Público e por uma “Unidade de Análise e Estudo de Casos”, propor novos procedimentos ou metodologias preventivas, sabendo que a referida Unidade será composta por membros permanentes, não permanentes e eventuais, sendo os seis membros permanentes provenientes do Ministério Público, que coordenará a Equipa, do Ministério da Justiça, do Ministério da Saúde, do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, sendo ainda composta por um membro não permanente proveniente da força de segurança territorialmente competente na área em que tiver ocorrido o homicídio (GNR ou PSP) e como membros eventuais, os representantes, que se mostrem necessários, das entidades públicas da área da saúde e da segurança social, e das organizações não-governamentais que tenham tido intervenção no caso em estudo.

Esta equipa terá como missão realizar uma análise a todos os processos-crime por homicídio ocorrido em contexto de violência doméstica (homicídio doloso, tentado ou consumado, direta ou indiretamente relacionado com o contexto sociológico e ou com as relações interpessoais referidas no artigo 152.º do Código Penal), transitados em julgado, independentemente do resultado do mesmo, olhando para o passado, com a preocupação de conhecer a intervenção de todas as instituições que desempenharam um papel naquela ocorrência, da qual resultou uma ou mais mortes.

No entanto esta equipa não terá como responsabilidade avaliar a intervenção dessas instituições que trabalharam no caso, nomeadamente as instituições da rede de apoio às vítimas, os órgãos de polícia criminal ou o Ministério Público, mas tão-somente conhecer os actos ou omissões que tiveram como consequência a morte daquela vítima, para que se possam corrigir procedimentos, com o objectivo de prevenir os homicídios em contexto de violência doméstica.

Apesar de aplaudir a criação desta “Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica”, reiteramos a importância da criação de equipas multidisciplinares de âmbito concelhio e que tenham como missão acompanhar todas as ocorrências de violência doméstica, cuja avaliação do risco recolhida através da ficha de avaliação de risco, recaia no risco médio ou elevado, verificando se os procedimentos tomados foram ou não os mais correctos, propondo em tempo oportuno a sua correção ou a implementação de novos, porque a intervenção destas equipas multidisciplinares poderá salvar vidas.


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