Beja: Primeiro de janeiro, passam hoje 54 anos sobre o assalto ao quartel.
Foi há 54 anos, na noite de 31 de dezembro de 1961 para 1 de janeiro de 1962, que se deu o assalto ao Quartel de Beja, Regimento de Infantaria (RI) 3. A “intentona do RI 3”, foi mais uma tentativa de deposição do Governo de Oliveira Salazar. Mário Soares disse em 1987, que o “25 de abril podia ter chegado 15 anos antes”.
As leituras dos acontecimentos são ainda hoje muito divergentes, nomeadamente se vistos à luz da política. Cidadãos, ligados ou não ao golpe, “lêem” os fatos de modo distinto, consoante são de esquerda ou de direita.
Muitos, talvez a grande maioria, defende que o assalto ao Regimento de Infantaria 3, em Beja, na viragem de 1961 para 1962, tem que ser lido no contexto dos acontecimentos históricos que marcam esses anos: a fuga de Cunhal de Peniche no ano anterior, o “Santa Maria” de Henrique Galvão, a tentativa de golpe palaciano de Botelho Moniz, o desvio do avião da TAP por Palma Inácio, a Crise Académica, o Fim de Portugal em Goa e, principalmente, o início da guerra colonial “para Angola rapidamente e em força”.
A revolta foi comandada pelo capitão Varela Gomes. Outro dos organizadores foi o civil Manuel Serra, participando o major Francisco Vasconcelos Pestana, filho do antigo ministro da I República, Pestana Júnior, o capitão Pedroso Marques e o tenente Brissos de Carvalho, bem como o civil Fernando Piteira Santos.
Depois de um tiroteio com o major Calapez, 2º comandante do quartel, Varela Gomes é gravemente ferido. Apesar dos ferimentos Calapez abate alguns dos revoltosos, consegue evadir-se e avisar as autoridades, Durante os acontecimentos, foi morto o tenente-coronel Jaime Filipe da Fonseca, então sub-secretário de Estado do exército.
Humberto Delgado, foi sempre apontado como o homem que esteve por detrás do golpe, mas sem nunca ter aparecido. O general “Sem Medo”, como era conhecido, entrara clandestinamente em Portugal, dormiu numa pensão em Lisboa e mais tarde deslocou-se para Beja na companhia de outros apoiantes da revolta. Ao verificar o fracasso Delgado volta ao exílio.
Tido como o principal responsável pela falha do golpe, face a sua intervenção, o major Calapez viria a ser condecorado. Em 1987, por ocasião da Presidência Aberta ‘Alentejo Verde’, Mário Soares, à chegada a Beja, diria: «Se não fosse um tal de major Calapez, o 25 de Abril teria sido 15 anos antes». Agastado, o coronel, na reserva, pegou na medalha que lhe fora atribuída por proposta do Governo e devolveu-a ao então primeiro-ministro, Cavaco Silva, explicando em carta, que prescindia dela, até porque tinha muitas outras
No seu site, o médico Francisco George, em Abril de 2011, por ocasião da passagem do Cinquentenário do assalto, escreveu sobre o caso e as memórias que guardava do mesmo, em virtude do seu pai ser médico dos Hospitais Civis de Lisboa.
O actual Director-Geral de Saúde escreveu: “A madrugada de 1 de Janeiro de 1962 é inesquecível para mim. O meu pai recebeu um telefonema do ministro da Saúde e Assistência, a pedir-lhe para organizar equipas de assistência médica de emergência para imediatamente seguirem para Beja em ambulâncias rápidas. Sabia-se, apenas, que tinha havido uma revolta no quartel, com intenso tiroteio e que havia mortos e feridos para socorrer. Ignorava-se a sua verdadeira magnitude. Sabia-se, igualmente, que o antigo Hospital da Misericórdia de Beja não tinha meios para responder à situação”.
Francisco George, afirma que só percebeu a sequência integral do que se passou naquele Primeiro de Janeiro de 1962, muitos anos depois, quando aí exerceu funções de delegado de saúde, em 1976: “A Revolta de Beja tinha sido planeada por Humberto Delgado. Pretendia a partir daqui conseguir a sublevação de outros regimentos e unidades das Forças Armadas e fazer cair Salazar. O assalto não correu bem. O insucesso, muito provavelmente, terá tido como explicação principal a falta de comunicações, apesar de Delgado ter acompanhado o assalto a partir de Vila de Frades, aldeia a 25 quilómetros de Beja, em casa de José Luís Conceição Silva, destacado activista da Oposição e residente na Quinta do Almargem em Vila de Frades, terá organizado o acolhimento ao General que ficou alojado no centro da aldeia na casa dos Raminhos”.
“Uma noite inesquecível, mas dura, muito dura de recordar” …… o depoimento de quem viveu os acontecimentos por dentro, feito nos 50 anos do assalto ao Quartel de Beja, que hoje recordamos.
Volvido meio século, continua hoje a ser uma noite dura e que muitos não querem recordar para não terem, por vários motivos, entre eles os políticos, o seu nome a ela ligado.
Benedito (nome fictício) era primeiro-cabo quarteleiro no Regimento de Infantaria 3 (RI3), na companhia de Ordem Pública, e tinha entrado de serviço às 23 horas de 31 de dezembro.
No quartel estaria metade da guarnição, cerca de 300 homens, a maior parte nas casernas, quando se ouvem as rajadas de metralhadora. “Tinha-me acabado de deitar quando ouvi os tiros. A noite era de temporal. Apesar da chuva e do frio ouviram-se os disparos”, recordando 50 anos depois, uma noite que Benedito nunca mais esquece.
“Corri ao gabinete do oficial de dia para receber ordens e dei de caras com mais de uma dúzia de civis”, lembrando que do rescaldo dois civis morreram. “Um estava no edifício do comando e o outro foi apanhado junto à enfermaria”, explica.
O primeiro-cabo recorda que só depois da alvorada viu os dois homens. “Um e outro foram levados, não se sabe para onde”, sendo o Hospital de Beja, o local mais indicado, porque ninguém soube quem os levou.
No dia anterior ao golpe, “um oficial (capitão Pestana) mandou tocar à ordem pública (formatura) e contou os militares”, lembra o primeiro-cabo.
Benedito e os outros militares estiveram fechados no quartel, de prevenção, uma dezena de dias e ai ouviram que o golpe fracassou porque “o mau tempo, impediu que os reforços do Algarve tivessem chegado”, causa apontada pelos revoltosos como a falha da revolta.
Fechados no quartel, foram ouvindo relatos dos camaradas dos diversos postos. “Tiraram as baterias dos aparelhos e cortaram as transmissões. O telefonista fez uma ligação “pirata” ao tenente Vieira da Silva (oficial de dia) e este avisou a GNR”, o que terá sido, segundo relato, decisiva para surpreender o grupo de sublevados.
Outro episódio relevante terá sido o fato de durante o golpe, o capitão Pestana ter ordenado ao sargento da guarda (sargento de dia) o “levantar as sentinelas dos postos”, explica.
Cinquenta anos depois, o primeiro-cabo ainda recorda ter sido ouvido “num auto” por um brigadeiro e meia dúzia de oficiais para “saber se havia cúmplices dentro do quartel ”, lembrando que sendo as vedações do quartel de arame farpado “entraram e saíram por muitos sítios”, pelo que a porta de armas da unidade terá sido franqueada desde o interior.
Teixeira Correia
(jornalista)
Foto: JORNAL DO EXÉRCITO