Opinião (José Lúcio/ Juiz): Todos presos, e isto resolve-se tudo?


As prisões gozam actualmente de uma estranha popularidade. Os portugueses de hoje entusiasmam-se com a possibilidade de se prenderem uns aos outros. Fale-se de qualquer vago delito ou de suspeita mais ou menos fundada e rebenta de imediato o clamor – deviam estar todos presos!

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

Se atentarmos nas reclamações que explodem diariamente nos meios de comunicação social e nas redes sociais – vejam-se as caixas de comentários – somos levados a pensar que meio país só ficava satisfeito depois de conseguir prender outro meio. E como o sentimento dessas metades é inevitavelmente recíproco, não se descortina ninguém insuspeito para ficar do lado de fora guardando a multidão dos presos.

Fale-se de corrupção – deviam estar todos presos. Fale-se de políticos – deviam estar todos presos. Fale-se de furtos ou de abusos sexuais – deviam estar todos presos. Por vezes fala-se até de juízes e vejo o mesmo desabafo – deviam ir todos presos.

O júbilo com que é acolhida a notícia de que alguém foi para a cadeia e a imensa frustração com que são recebidas as notícias referindo alguém que não foi, a ânsia e a aspiração exuberante a mais e mais prisões, parecem naturalmente intrigantes. Esta devoção pela cadeia, ou a crença ingénua de que as prisões em massa podem resolver problemas sociais de diversa ordem, devem ser algo de novo, próprio da nossa época e sociedade.

Antigamente as pessoas desconfiavam das prisões, e condoíam-se dos presos. Não era impopular nem mal vista a obra de misericórdia que mandava a todos cuidar dos prisioneiros.

Claro que também houve sempre multidões a exigir forcas ou fogueiras, quando os ventos empurravam nesse sentido. Mas este fetichismo pela cadeia é coisa nova. Na sociedade antiga a cadeia era apenas um local de passagem – onde se aguardava um qualquer destino. Ainda que se eternizasse a situação, a cadeia era vista tão só como um espaço de espera para quem merecia pena a sério ou suplício injusto para quem não a merecia.

Observando o fenómeno, de adoração pelas prisões, encontramos associadas um conjunto de percepções que estão pacificamente instaladas como indiscutíveis e que são claramente erróneas (de uma forma que pode ser verificada por quem esteja interessado em certificar-se, atitude esta que obviamente não ocorre).

Desde logo, o sentimento de insegurança, ou a sensação de aumento alarmante da criminalidade. De nada vale observar que Portugal é um dos países mais seguros do mundo, e com menores índices de criminalidade, segundo todos os indicadores disponíveis. De nada vale observar que em Portugal o crime violento vem diminuindo desde que se conhecem dados estatísticos (ninguém hoje imagina o que era a criminalidade violenta no Portugal rural e urbano de há cem anos).

Diga-se o que se disser, a imagem criada permanece, teimosa e inamovível.

Outro exemplo pode ser a ligeireza das penas, ou a brandura da justiça. A verdade é que os números disponíveis apontam para que a duração média das penas de prisão aplicadas por cá seja maior do que na generalidade dos países europeus.

E quanto ao uso da pena de prisão, é notório que a nossa taxa de encarceramento é muito elevada quando comparada com os nossos congéneres europeus. Nenhum dos países europeus de dimensão semelhante ao nosso possui um tal número de presos. E pensando apenas em termos nacionais, conseguimos por estes anos uma população prisional com uma expressão desconhecida em qualquer período anterior (ter atingido quase catorze mil presos numa população como a portuguesa é obra notável e singular).

Em suma: a convicção da insegurança pública, do aumento da criminalidade, da brandura das penas, do pouco uso da pena de prisão (ninguém vai preso!) parecem ser ilusões de óptica, que como todas as crenças arreigadas são muito difíceis de combater com argumentos racionais (os interlocutores não querem saber).

Termino ainda confidenciando uma dúvida que sempre mantive sobre a eficácia desejada para o uso generalizado da pena de prisão. Olha-se para o exemplo americano e aí sim constata-se uma taxa de encarceramento impressionante. Presos aos milhões. Todavia, temos que perguntar pelos resultados. A sociedade americana é mais segura, pacífica e tranquila do que a nossa? Existem menos assaltos, menos tiroteios, menos homicídios? Quais foram os resultados dessa política? Quem souber responder que responda. Por mim só queria deixar uma chamada de atenção. Sejamos prudentes, e não nos deixemos cair em respostas simples para questões complexas.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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