Opinião (José Lúcio/ Juiz): Tribunal de Beja – para memória futura.


Lembro-me muitas vezes do Verão de 2014. Foi o tempo da instalação da nova organização judiciária, e o Tribunal Judicial da Comarca de Beja teria que estar instalado e a funcionar no dia 1 de Setembro. Surpreendentemente, o processo não correu mal.

José Lúcio

Juiz

Refiro a surpresa porque normalmente quando algo tem todas as condições para correr mal acaba mesmo por correr mal. Crente nessa regra, mantenho sempre um olhar céptico sobre qualquer empreendimento em que me meto e em que vejo prenúncios de naufrágio. Ora o processo de implementação da nova organização judiciária apresentava múltiplos sinais para justificada apreensão.

Tratava-se de uma operação de elevada complexidade, em que três milhões e meio de processos teriam que mudar de uma para outra realidade orgânica. Ao nível da nova Comarca de Beja, extinguiam-se os dez antigos tribunais (correspondentes às velhas Comarcas de Almodôvar, Beja, Cuba, Ferreira, Mértola, Moura, Odemira, Ourique e Serpa, e ainda o Tribunal do Trabalho) e todos os processos existentes teriam que ser redistribuídos pelas novas unidades.

Tanto a nível informático como no plano físico a concretização da mudança implicava um esforço enorme, e os meios escasseavam num mês de Agosto em que meio país estava distraído e em férias e também o outro meio estava longe de entender o que estava em causa. Vivi portanto uma daquelas surpresas que só acontecem aos pessimistas: as coisas correram bem melhor do que esperava. Mesmo com tão poucos funcionários no terreno, foi possível organizar e tratar as dezenas de milhares de processos da nossa responsabilidade de modo que chegassem ao seu destino e, obviamente, não se perdessem nem extraviassem.

O resultado ficou a dever-se a uma conjugação de vontades que é justo realçar. Umas poucas dezenas de funcionários, nos diversos núcleos do distrito, sacrificaram férias para cumprir a tempo a gigantesca tarefa de arrumar e fazer transitar essas dezenas de milhares de processos para os seus novos destinos. Os homens da GNR e os seus camiões possibilitaram o resto. No dia 1 de Setembro de 2014 a nossa parte estava feita, e o novo Tribunal estava pronto a funcionar.

Claro que o arranque veio dar destaque a problemas que já se anteviam, por traduzirem insuficiências vindas de muito antes. O sistema informático dos tribunais tardou a dar resposta à nova realidade. Em Beja tornou-se patente a falta de espaço do velho Palácio da Justiça para alojar a carga processual e o quadro de pessoal que passou a comportar. Até as arcadas do claustro tiveram que ser transformadas em salas de apoio às secretarias judiciais. Nas decrépitas instalações do Governo Civil continuou a funcionar a jurisdição laboral, numas velhas salas em que a humidade, o bolor, a falta de isolamento térmico, até a falta de condições acústicas ou a inexistência de uma casa de banho própria eram as notas dominantes. O novo juízo de Família e Menores, criação da reforma, não tinha lugar em Beja. A questão da sua instalação só foi resolvida ao aproximar-se esse final de Agosto, através de uma Portaria que o deslocalizava provisoriamente para Ferreira do Alentejo, onde o edifício judiciário permitia o seu alojamento.

Ainda assim, aconteceu: a 1 de Setembro de 2014 o novo Tribunal Judicial da Comarca de Beja começou a funcionar. Vivi intensamente esse Agosto, hospedado então no Hotel Beja Park de forma a acompanhar aqui em Beja todo o processo, correndo as estradas do distrito para pessoalmente verificar em cada local como evoluíam os acontecimentos, e confesso que ao começar Setembro a angústia foi dando lugar a um certo alívio. A coisa, afinal, funcionava.

Desde então, a tal coisa, se fizermos um balanço justo e sereno, com critérios de razoabilidade, não se tem portado nada mal. Sinto-me grato a quantos estiveram comigo nesta história, e não escondo um certo orgulho. Fraquezas – todos as temos.

 (Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


Share This Post On
468x60.jpg