VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ONDE TUDO CONTINUA A FALHAR


No dia 6 de junho foi detido um homem suspeito de atropelar mortalmente uma mulher em contexto de Violência Doméstica (VD), no concelho de Matosinhos, sabendo-se hoje, que todo o sistema que devia proteger esta mulher falhou.

Rogério Copeto

Coronel da GNR

Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna

Sabe-se hoje que esta vítima de 36 anos foi atropelada pelo ex-namorado, contra quem tinha apresentado uma queixa 13 dias antes da sua morte, cujo resultado da avaliação de risco resultou numa classificação de risco baixo e que a medida de proteção por Teleassistência a vítimas de VD foi-lhe atribuída no dia em que morreu.

Sobre o agressor sabe-se que tem 41 anos, já tinha estado preso por matar uma outra ex-namorada à facada, pelo que foi condenado em 2011 a uma pena de 15 anos e meio, mas foi posto em liberdade condicional em dezembro de 2019 e que após sair da prisão, enfrentou uma nova acusação de VD em 2020, mas não houve qualquer condenação.

Esta grave ocorrência vem expor as fragilidades de um sistema de proteção às vítimas de VD que não existe e que urge implementar, pretendendo-se com o presente artigo contribuir para a criação desse sistema.

Mas antes de reiterar as nossas propostas, importa relembrar que através do Relatório Anual de Segurança Interna de 2023 (RASI 2023), ficámos a saber que foram participados aos órgãos de policia criminal (OPC) 30.461 crimes de VD em 2023, verificando-se uma descida de 0,1% comparativamente com o ano de 2022, quando foram participados 30.488 crimes, sendo o crime de “violência doméstica contra cônjuge ou análogo” aquele que mais vezes foi participado aos OPC, num total de 26.041 vezes.

Nos últimos 10 anos verifica-se que entre 2014 e 2018 a VD manteve-se relativamente estável entre os 26.500 e os 27.300 crimes, tendo em 2019 aumentado para perto do 29.500, descido nos anos da pandemia de COVID19 para cerca de 26.500 crimes, aumentando em 2022 para perto dos 30.500 e mantendo-se em 2023, tal como já referido.

Também importante é referir o trabalho que a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) efetuou entre 2016 e 2022, cuja missão foi analisar retrospetivamente as situações de homicídio ocorrido em contexto de violência doméstica e que tivesse sido objeto de decisão judicial transitada em julgado ou de decisão de arquivamento ou não pronúncia, visando retirar conclusões que permitissem a implementação de novas metodologias preventivas ao nível dos respetivos procedimentos e também a produção de recomendações às entidades públicas ou privadas com intervenção neste domínio, tendo ​sido elaborados 22 relatórios e respetivas recomendações.

Chegados a este ponto, reiteramos que a falha está num sistema de proteção de vítimas de VD que não existe, sendo por isso urgente a criação de um verdadeiro sistema de proteção.

A proposta passa pela criação de estruturas semelhantes ás Multi-Agency Risk Assessment Conference (MARAC), tal como existem no Reino Unido e que poderíamos denominar de Comissões Multidisciplinares de Avaliação de Risco da Violência Doméstica (CoMARVD), á semelhança das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (CPCJ), sendo as mesmas constituídas por representantes de todas as instituições e organizações que lidam com o fenómeno da VD, tal como a Educação, a Segurança Social, os Serviços de Saúde, as Forças de Segurança, as autarquias, as ONG, etc., debaixo da supervisão do Ministério Público (MP), posicionando-se a sua intervenção entre as Entidades de Primeira Linha e os Tribunais, tal como acontece com as CPCJ.

As CoMARVD, teriam assim muito mais poderes do que os “gabinetes de apoio às vítimas de VD”, entretanto criados em vários Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP), tendo como principal tarefa a análise de todas as fichas de avaliação de risco elaboradas, incluindo as de baixo risco e especialmente as de elevado risco, com a possibilidade de aplicar medidas urgentes de proteção das vítimas e de afastamento dos agressores, em menos de 72 horas, com posterior sancionamento pelo Tribunal, sendo remetidas as estas comissões cópia de todo o expediente onde se inclui a ficha de avaliação de risco e o respetivo auto de noticia padrão, em simultâneo do envio ao MP.

As CoMARVD teriam ainda a possibilidade de aplicar a medida de proteção por teleassistência a todas as vítimas de VD, bastando para o efeito, um despacho do(a) Presidente da CoMARVD, e não do Juiz ou, durante a fase de inquérito, do MP, diminuindo-se assim a carga burocrática e o tempo entre a ocorrência a atribuição do Serviço de Teleassistência.

A implementação das CoMARVD traria assim vários benefícios, tanto para as vítimas de VD, como para os profissionais envolvidos, cujo principal benefício seria a melhoria da coordenação entre as diferentes instituições e profissionais, o que poderia resultar numa intervenção mais eficaz e na redução do risco para as vítimas, garantindo ainda uma comunicação eficaz e segura entre as diferentes instituições e profissionais envolvidos, sendo necessário para isso, criar uma plataforma digital segura que permitisse a partilha de informação de forma rápida e eficaz, garantindo ao mesmo tempo a privacidade e a confidencialidade dos dados.

A criação das CoMARVD pode ser uma medida adicional e complementar às existentes para prevenir e combater a VD em Portugal, cujo funcionamento se baseia na partilha de informação entre profissionais de diferentes áreas, adaptando este modelo de trabalho às necessidades e recursos disponíveis no país, a cujos profissionais envolvidos seria garantida a necessária formação adequada, de modo a assegurar a uniformidade e qualidade da intervenção.

No que diz respeito ao Serviço de Teleassistência a Vítimas de VD, propomos que a responsabilidade pela sua operacionalização passe para as FS, deixando de estar debaixo da alçada da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) e da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), não sendo esta proposta uma crítica à forma como ambas as instituições têm conseguido dar conta do recado, mas sim, porque quanto mais próximo tiverem as vítimas de VD das FS, mais rápido será a resposta destas às situações de emergência, eliminando-se os intermediários, sendo de inteira justiça referir que cabe às FS grande parte da responsabilidade do sucesso deste serviço e que já salvou inúmeras vidas.

Também o instrumento de avalização de risco deverá merecer uma atualização, de modo a que os resultados sejam o mais próximos possível do risco que a vítima enfrenta.

É ainda urgente a entrada em funcionamento da Base de Dados de Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica (BDVMVD), que reuna todos os dados recolhidos pelas FS, verificando-se que possivelmente ainda não será em 2024, conforme consta no RASI 2023 “…foi lançado procedimento concursal para aquisição de serviço de desenvolvimento da BDVMVD”.

Pelo exposto, verifica-se que só a criação das CoMARVD, se conseguirá pôr todas as instituições a trabalhar em conjunto e em articulação prevenindo-se falhas, que por muito pequenas que sejam conduzem a homicídios em contexto de relações íntimas.

Nota: O texto constitui a opinião exclusiva e única do seu autor, que só a este vincula e não refletem a opinião ou posição da instituição onde presta serviço.


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