Opinião (Rogério Copeto/ Oficial da GNR): CRÓNICA DE UM HOMICÍDIO.


B lançou mão da garrafa contendo o líquido tóxico que levou consigo, verteu o respectivo conteúdo na boca e garganta de M, que se encontrava já inanimada, e tapou-lhe aboca com uma meia de licra, amordaçando-a e atando a meia à volta da cabeça, colocando depois a parte do nó na boca dela, com vista a que a mesma engolisse o tal produto e a melhor assegurar o êxito da sua intenção de lhe colocar fim á vida”.

Rogério Copeto

Tenente-Coronel da GNR

Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna

Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação

O excerto com que iniciámos o presente artigo foi retirado do primeiro “Relatório Final” elaborado pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD), datado de 25 de outubro de 2017, que procedeu à análise “da situação de homicídio em contexto de violência doméstica que foi objeto do processo nº 2892/15.9JAPRT da Comarca do Porto Este, cuja decisão definitiva resultou de acórdão do tribunal da Relação do Porto de 22/2/2017, transitado em julgado”, cujos factos tiveram origem na denúncia, pelo crime de violência doméstica (VD), apresentada no Posto da GNR de Paços de Ferreira, com o NUIPC 659/15.4GAPFR.

Para melhor esclarecimento sobre a criação e constituição da EARHVD que iniciou o seu trabalho no ano passado, sugerimos uma leitura aos nossos artigos com o título “Equipas de análise prospetiva em violência doméstica”, publicado em 12 de maio de 2015 e “Homicídios em retrospectiva”, publicado no dia 1 de novembro de 2016, lembrando apenas que a EARHVD tem como responsabilidade analisar a intervenção de todas as instituições que tiveram intervenção na ocorrência de VD da qual resultou uma ou mais mortes por homicídio, olhando para o passado e tendo como fonte de trabalho os processos crime por homicídio, transitados em julgado, de modo a conhecer os atos ou omissões que tiveram como consequência a morte, de modo a corrigir procedimentos, prevenindo os homicídios em contexto de VD.

Para elaboração do referido Relatório Final a EARHVD, em cumprimento do nº 4 do artº 4º-A da Lei nº 112/2009 e do artº 10º da Portaria nº 280/2016, teve acesso aos acórdãos do Tribunal da 1ª instância e do Tribunal da Relação, bem como outras peças processuais, informações escritas prestadas pelo Comandante de Posto de Paços de Ferreira e informações obtidas nos registos do Serviço Nacional de Saúde, referindo ainda a EARHVD que “não foram obtidas informações adicionais relevantes para a análise, de outras entidades contactadas: Polícia de Segurança Pública, Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), Instituto da Segurança Social, IP e organismo da administração pública pela área da cidadania e da igualdade de género”.

O exposto no parágrafo anterior suscita-nos um comentário relativo ao anonimato dos intervenientes, tal como está previsto no nº 3 do artº 12.º da Portaria nº 280/2016, sob a epígrafe “Dever de sigilo e partilha de informação”, onde consta que “os relatórios finais de análise de casos e as recomendações só podem ser revelados a terceiros depois de convenientemente anonimizados”, verificando-se que o estipulado foi cumprido para as vítimas e agressor, mas não o foi para os restantes intervenientes, uma vez que se pode interpretar a referida norma de forma extensiva a todos intervenientes no processo, nomeadamente aos elementos das Forças de Segurança (FS), até porque, salvo melhor opinião, a identificação desses elementos e da FS a que pertencem, não contribui em nada as conclusões do relatório, porque em abstracto as recomendações apresentadas servirão para todos as FS, devendo por isso o representante da FS territorialmente competente e membro não permanente da EARHVD, ser referenciado apenas pelo nome.

Considerando a documentação consultada, a EARHVD conclui que no âmbito dos Serviços de Saúde “não existe qualquer registo da adoção de medidas específicas de prevenção nem que tenha sido partilhada informação com outras instâncias de intervenção”, que o Ministério Público “se limitou a delegar a realização do inquérito da Guarda Nacional Republicana” e que “a avaliação de risco não foi efectuada nem supervisionada por membro da Guarda Nacional Republicana com formação especializada para o tratamento destes casos”, concluindo ainda que “não foram procuradas outras informações para além das prestadas por M, assim como não foi dado o devido relevo à sua declaração de que temia pela vida”, tendo por isso sido inicialmente atribuído o risco médio e na reavaliação diminuído para baixo “o que indica uma utilização deficiente dos instrumentos de avaliação de risco”, não existindo ainda “documentação sobre a execução das medidas de protecção definidas pela Guarda Nacional Republicana, que constam da ficha de avaliação de risco, registo muito importante para assegurar o seu controlo e monitorização”.

Ainda em face da informação recolhida a EARHVD conclui pela existência de dois momentos críticos essenciais na agudização do conflito (“disparadores de risco”), sendo o primeiro quando a vítima mortal manifestou a intenção de se separar do agressor, três meses antes da denúncia e o segundo quando o agressor foi constituído arguido, um mês depois da denúncia, propondo-se por isso no que diz respeito à GNR “analisar o modo como se desenvolveram os procedimentos de avaliação do risco e foram executadas as medidas de protecção da vítima mortal, e também o modo de execução das diligências de inquérito, concretamente da audição da vítima e do interrogatório do arguido”, cujas diligências ocorreram no mesmo dia, separados por uma hora.

As conclusões sobre a avaliação de risco atrás referidas são sustentadas na documentação que consta no processo e na auscultação do Comandante do Posto de Paços de Ferreira, que prestou todos os esclarecimentos solicitados, referindo a EARHVD que não foram assinalados pelo menos quatro itens da ficha de avaliação de risco “e que podiam ter sido objecto indagação e consideração, caso a fonte não tivesse sido apenas as declarações da vítima”, bem como “o elemento policial que as preenche pode atribuir um nível de risco diferente do que resulta do cálculo automático, baseado na informação recolhida e na sua experiência profissional”, facto que podia ter contribuído para aumentar o nível de risco, referindo no entanto a EARHVD, no que diz respeito á cotação dos factores de risco terem igual peso, que “a nosso ver, deverá ser reponderado numa futura revisão”.

Sobre as medidas de protecção da vítima a EARHVD refere que “nenhuma iniciativa foi tomada pelo MP quanto a medidas de protecção à vítima” e que a GNR apesar de ter assumido a implementação de algumas medidas, após pedido de esclarecimento “respondeu que o foram ‘atendendo à disponibilidade operacional de meios’, e quanto à sua documentação esclareceu que ‘estas acções pretende-se pró-ativas, sendo devidamente determinadas aos militares, sem necessidade de ser vinculadas sob a forma escrita”, considerando a EARHVD ser muito importante a documentação da execução das medidas de proteção da vítima, “para assegurar o seu controlo e monitorização”.

Em resultado das conclusões referidas a EARHVD apresenta recomendações dirigidas à área da saúde e à área da segurança, recomendando a esta última “que a avaliação de risco para a vítima (utilização das fichas de RVD-1L e RVD-2L) seja efetuada, em regra, por profissionais especializados/as e com experiência no domínio da violência doméstica. Caso tal não se mostre viável no caso concreto, que seja supervisionada por profissional especializado/a, em prazo que não deve exceder 48 horas”, recomendado ainda “que as diligências de implementação das medidas de protecção e do plano de segurança definidos para a vítima, bem como os incidentes da sua implementação, devem estar registados em documento próprio, que será junto ao processo crime, por forma a que seja possível conhecer e controlar a sua efectiva execução”, terminando referindo “que a audição da vítima e do/a agressor/a seja, em regra, efectuada em dias diferentes, de modo a melhor acautelar a protecção daquela”.   

Terminamos relembrando que a EARHVD tem a missão de proceder à análise de todos os homicídios, transitados em julgado, que tenham ocorrido em contexto de VD, com o objetivo de reduzir a incidência de homicídios relacionados com este fenómeno e melhorar a prestação dos serviços de apoio às vítimas e de recuperação dos agressores, sustentando essa análise numa filosofia de avaliação imparcial dos acontecimentos que antecederam o homicídio, visando unicamente identificar e recomendar melhorias nas respostas por parte de todas as instituições envolvidas, monitorizando o progresso na implementação dessas recomendações, desenhando e divulgando orientações e boas práticas, que deverão ter como consequência a não ocorrência das mesmas omissões que levaram á morte de M às mãos de B, no dia 27 de setembro de 2015.


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