Rede altamente organizada e multinacional explorou em Portugal milhares de imigrantes timorenses, romenos, moldavos, indianos, ucranianos, paquistaneses e senegaleses, que viviam em condições desumanas, entre ameaças e fome. MP acusou 41 pessoas por associação criminosa, tráfico e branqueamento. Há 9 portugueses envolvidos.
Há cerca de um ano, quando a Polícia Judiciária (PJ) irrompeu pela casa térrea, branca e cinza, dos líderes romenos da rede de tráfico de seres humanos, que desde 2018 operava a partir de Cuba, no Alentejo, encontrou um caderninho quadriculado com a listagem dos nomes dos trabalhadores explorados e as horas diárias que cada um fazia na agricultura. Alguns estavam apenas identificados como “negrii”, os “negros” em português. Numa palavra resumiam assim o que significavam para eles: eram escravos, os seus escravos que em cinco anos permitiram à organização faturar mais de €7,7 milhões, sem declarações de IVA, IRC ou contribuições à Segurança Social.
A soma surge no despacho de acusação, conhecida esta semana e a que o Expresso teve acesso. A investigação dirigida pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, em colaboração com a Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ, levou o Ministério Público (MP) a acusar 51 arguidos, 41 pessoas e 10 empresas, pelos crimes de associação criminosa, tráfico de seres humanos e branqueamento de capitais. Há 26 arguidos em prisão preventiva.
Foi uma das maiores operações de luta contra a exploração de trabalhadores agrícolas no Alentejo, com 400 inspetores a dar cumprimento a meia centena de buscas e o próprio juiz Carlos Alexandre no terreno. Percebe-se agora porquê. A rede era extensa, altamente organizada, hierarquizada e multinacional, com uma estrutura humana e logística oleada e transfronteiriça. No Baixo Alentejo estava presente em pelo menos 14 localidades — Cuba, Beja, Salvada, São Matias, Cabeça Gorda, Peroguarda, Albernoa, Pedrógão, Faro do Alentejo, Baleizão, Vila Azedo, Vila Alva, Serpa e Beja —, tinha elementos romenos (20), portugueses (9), moldavos (7), indianos (3), guineenses (1) e ucranianos (1), e ‘angariadores de escravos’ em quase todos os países de origem dos exploradores.
O plano foi concebido por dois cidadãos romenos, um homem e uma mulher, ele com 36 anos, ela com 29. Para tal, recrutaram para a sua estrutura concidadãos com ligações familiares. Constituíram três grupos, dividiram tarefas, vítimas e lucros entre eles. À medida das necessidades, juntaram à organização colaboradores asiáticos, africanos e portugueses, estes últimos encarregados agrícolas, proprietários fictícios de firmas e automóveis, promotores imobiliários e uma solicitadora. O ‘escritório’ funcionava informalmente no Café Gazela, em Beja.
Apesar da acusação apenas se basear na identificação de 55 vítimas, a documentação e informações recolhidas nas buscas e durante um ano de vigilância e escutas eleva o número dos trabalhadores para os milhares, entre timorenses, romenos, moldavos, indianos, ucranianos, paquistaneses e senegaleses. No dia da operação policial, a 23 de novembro de 2022, foram identificados “em condições de miséria humana” 457 pessoas. Três precisaram de assistência médica.
Em anúncios no Facebook e por contacto direto nos países de origem, as vítimas eram aliciadas com empregos nas explorações agrícolas portuguesas, para as apanhas sazonais — melão, azeitona, amêndoa, batata… Garantiam-lhes “um bom salário, alojamento condigno e boas condições laborais”. Encontraram o mundo inverso. “Acabavam por ser obrigadas a trabalhar em troca de um parco salário, um alojamento em condições degradantes e sub-humanas, cujo valor lhes era, ainda assim, descontado do suposto salário que teriam de receber”, lê-se na acusação.
A viagem fazia-se por quatro rotas: uma aérea, Bucareste-Lisboa, e três terrestres, em carrinhas ou camionetas de passageiros, com partida da capital romena, de Krynychne (Ucrânia) ou de Chisinau (Moldávia) e chegada direta ao parque do Intermarché ou do novo Continente de Beja ou ao local de trabalho. A maioria dos imigrantes do Paquistão, Índia ou Timor era angariada em Portugal a um intermediário asiático.
17 por quarto, quatro por colchão
Cruzando as declarações das vítimas com a documentação apreendida aos exploradores, descobrem-se os pormenores dos anos de escravatura. Os trabalhadores eram altamente controlados dentro das próprias herdades, com gritos constantes e mesmo violência. Alguns funcionários das estufas eram avençados da rede, recebendo uma percentagem do salário dos imigrantes, para alertar para inspeções e dar prioridade de contratação quando surgiam vagas.
As prometidas 7 ou 8 horas diárias de trabalho estendiam-se até às 15, sete dias por semana, com 15 minutos para almoçar. Os €5 à hora, passavam a um salário de €150 ou €50 por mês para que pudessem “sobreviver nos limites”, descontado o alojamento e a taxa cobrada por lhes terem arranjado trabalho em Portugal. Assinavam contratos — diziam-lhes que eram contratos — em português, língua que não dominavam. Às vezes recebiam nada. O tráfico era pago pelo próprio traficado. Alguns tinham de “mendigar para subsistir”. Passavam fome.
Viviam em casas degradadas, às dezenas, “amontoados em locais indignos”, em alguns sítios 17 por quarto, quatro por beliche, três a quatro por colchão no chão, com baratas e pulgas, sem casa de banho, só latrinas ao ar livre, sem água corrente, luz ou comida. Pagavam por isso até €120 cada. A maioria dos imigrantes não tinha consigo a documentação de identificação.
Os protestos e reivindicações eram controlados com ameaças físicas “musculadas” e psicológicas, tanto aos trabalhadores como aos seus familiares, que permanecem nos países de origem, criando um “clima de medo e terror, sem qualquer capacidade de reação (…), como se de escravos se tratasse, vítimas de uma organização que não olha a meios para atingir os seus fins”, lê-se no despacho.
Mas houve quem lograsse ser salvo ou encontrar salvação na fuga. Um grupo de 31 timorenses, alojados num monte “em condições muito degradantes”, foi retirado graças à intervenção da GNR, Segurança Social e Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e colocado em casas-abrigo para vítimas de tráfico. Mais tarde, seis ucranianos conseguiram chegar ao posto local da GNR. Os líderes da rede foram até lá, “ameaçando-os de morte através de gestos com o dedo polegar a atravessar a garganta, acompanhados de gritos”.
Um casal moldavo de namorados também conseguiu fugir, mas não se livrou antes das agressões quando anunciou a intenção de partir. Outro conterrâneo foi espancado por exigir pagamentos em atraso, obrigando ao seu internamento no Hospital de Beja. Foi resgatado pela Cruz Vermelha já como sem-abrigo no Cartaxo. Durante as buscas, a PJ encontrou várias armas de fogo ilegais, algumas com o número de série rasurado, facas e tubos com que os trabalhadores eram ameaçados e agredidos.
No esquema, a solicitadora portuguesa tem um papel importante. As empresas e sociedades de trabalho temporário que ajudava a abrir, algumas com €5 de capital social “para não parecer mal”, serviam apenas para estabelecer contratos com as explorações agrícolas que pagavam elevadas somas pela angariação de trabalhadores. Nas buscas foram encontrados registos de transferências de €264 mil, €137 mil, €104 mil, €101 mil, para firmas com nomes criados na hora, como Primavera Sedutora, Alvorada Perfumada, Raízes Abastadas, Zodíaco Cristalino, Seara Opulenta, Castor Afável ou Miríade de Alfazema.
Esses montantes eram depois levantados e entregues em mão aos cabecilhas de forma faseada. Surgiriam mais tarde sobre a forma de Porsches, Mercedes e BMW, casas a ser construídas nos países de origem dos traficantes e fios de ouro.
Notícia: Lidador Notícias/Expresso