Moura: Como uma lei da União Europeia sobre a China acabou com 105 empregos.


A União Europeia (UE) acabou com as taxas de importação de painéis solares da China. E a fábrica de Moura fechou uma semana depois, agravando o desemprego num dos concelhos mais afetados do país.

Reportagem de Céu Neves 

Jornalista

Diário de Notícias

“É uma machadada no concelho.” É esta a expressão que trabalhadores e dirigentes das entidades locais de Moura, como a autarquia e a paróquia, usam para descrever o fim da fábrica de painéis solares da região. Já era a quarta região com mais desemprego do país, 13% – piores só Barrancos (15,8%), Mesão Frio (13,3 %) e Lamego (13,1%), segundo os dados do IEFP para 2017. Agora são mais 105 pessoas desempregadas. Todas com uma média de idades de 39 anos, entre as quais dez casais.

Fábio Cardona e Patrícia Augusto tiveram o primeiro emprego na Moura Fábrica Solar. Fábio é de Estremoz e começou a namorar com Patrícia, que era de Moura. Tiveram conhecimento de que ia abrir uma fábrica e inscreveram-se, ele tinha 23 e ela 25. Ele faz parte do primeiro grupo contratado pela Acciona, a empresa espanhola proprietária da Moura Fábrica Solar que também tem a Central Solar Fotovoltaica de Amareleja. O emprego ajudou o casal a fixar-se na cidade, numa daquelas histórias que contraria o abandono do interior, construíram a sua família à volta da fábrica, tiveram duas filhas.

Depois deles, houve três fases de recrutamento, entre dezembro de 2007 e setembro de 2008. A fábrica começaria a laborar pouco tempo depois. “Era um projeto de início, construído de raiz e com equipamento novo, tinha tudo para continuar”, diz Fábio. Fizeram formação, Fábio era técnico de manutenção e a Patrícia operadora de qualidade. Trabalhavam em turnos de oito horas e que trocavam todas as duas semanas, gostavam do que faziam. A fábrica laborava 24 horas por dia, de segunda a sexta. Para a média de um concelho interior, ganhavam bem, 800/900 euros mensais. As filhas, de 5 e 12 anos, vivem e estudam em Moura.

No dia 7 de janeiro, a Acciona mudou uma história que tinha tudo para continuar feliz. Anunciou aos trabalhadores que a empresa não tinha viabilidade económica e que iriam entrar em negociações para o despedimento coletivo. Fábio Cardona é delegado sindical do Sindel (Sindicato Nacional da Indústria e da Energia), uma das estruturas que, a par do SIESI (Sindicato das Indústrias Elétricas do Sul e Ilhas), vai participar nas negociações das indemnizações.

O que aconteceu foi uma mudança em Bruxelas, que, no dia 3 de setembro, deu cabo de mais de cem vidas em Moura. Os parceiros que exploravam a fábrica de painéis solares, os chineses da Jinko Solar, deixaram de produzir em setembro de 2018, uma semana depois de a Comissão Europeia eliminar as taxas de importação de painéis solares chineses. Essas taxas tinham sido impostas em 2013, depois de uma investigação concluir que empresas chinesas vendiam painéis solares na Europa abaixo dos preços normais de mercado – o chamado dumping. Agora a decisão foi revogada, com o governo chinês a congratular-se por a medida gerar um “ambiente de negócios mais estável e previsível” de modo a que as indústrias de ambas as partes possam obter “resultados vantajosos”.

E a fábrica de Moura deixou de ter préstimo para a Jinko, que canalizou as encomendas para as suas fábricas da China.

De novo o recurso à emigração ?

Foi o golpe que coincidiu com o fim do período de dez anos em que a Acciona era obrigada a manter mais de cem postos de trabalho. Esta obrigação decorria da compra da empresa portuguesa Amper Central Solar (Central Fotovoltaica de Amareleja). O último grupo de operários fora contratado em setembro de 2008.

A emigração será o último recurso. E agora, que a fábrica fechou mesmo? “É muito difícil arranjar trabalho porque é um meio pequeno. Já é difícil para uma ou duas pessoas, agora 105 de uma vez é muito complicado. Onde poderia haver alguma coisa é no campo, mas está a terminar a apanha da azeitona”, diz Fábio. Se as filhas fossem mais pequenas, ponderavam emigrar. “Será o último recurso, deixar casa, as filhas na escola…” E sem esperança de que uma empresa pegue na MFS. “Moura fica numa zona isolada. Não é um local de passagem, só vem para cá quem quer. Mesmo para a indústria é muito complicado, a falta de acessos dificulta muito o investimento.”

Luís Cruz, de 60 anos, assinou contrato no primeiro grupo e acompanhou todo o processo de lançamento da MFS. Foi várias vezes ao Complexo Polo Tecnológico de Moura, onde a fábrica se instalou, antes de esta abrir as portas. “Não posso dizer que vi colocar a primeira pedra porque as instalações estavam prontas, mas vi entrar as máquinas, vi isto a crescer”, conta, ainda emocionado.

A alegria que sentiu quando entrou transformou-se em uma angústia quando saiu, 11 anos depois de assinar o contrato.

Emigrar já foi uma opção para Luís Cruz, 60 anos. Pelo menos antes de ser criado um polo industrial na sua terra, Moura – o polo tinha três empresas, agora vai voltar a ter duas. Luís viveu 24 anos na Suíça, mas agora diz que já não tem idade para voltar a emigrar. Além de que a mulher tem uma loja, o que garante o segundo rendimento da família. Isto apesar de os filhos terem ficado na Suíça. Tem quatro netos.

Luís entrou para a fábrica quando deixou o estrangeiro, como operário, ultimamente era rececionista, era o mais velho. “É quem estraga a média de idades jovens da empresa”, brincam os colegas. O sentimento geral é de incredulidade, até porque as encomendas não faltavam. Acrescenta Milton Raimundo: “Até há pouco tempo, a fábrica estava cheia de painéis solares, o que quer dizer que tinha encomendas. O que está à vista é que a Jinko foi embora uma semana depois de serem retiradas as taxas para a importação de painéis solares chineses.”

Milton Raimundo tem 40 anos e faz parte do segundo grupo de contratados. Antes, trabalhava com o pai numa serralharia. Entrou na fábrica como operário, agora era coordenador de turno. A mulher é funcionária pública. Moura tem cinco freguesias e 14 004 residentes. É um concelho envelhecido, com uma proporção de 148,6 idosos para cem jovens. Nascem poucas crianças, mesmo com o apoio de 500 euros que a autarquia dá em géneros a cada recém-nascido. E as que nascem acabam por sair quando atingem a maioridade.

Uma localidade deserta.

As ruas da cidade estão desertas, bairros com as casas fechadas, sinal de que os seus habitantes morreram ou emigraram. Uma imagem desoladora é o Mercado Municipal D. Pedro V, na continuidade da Câmara Municipal de Moura, com as bancas vazias. Só à sexta-feira e ao sábado tem mais vendedores, ainda assim continua vazio. “A forma de conseguir que os mais jovens fiquem é garantir que tenham um projeto de vida. E isso só se pode conseguir com um emprego, o que não há”, lamenta o presidente da Câmara, Álvaro Azedo. Introduziram uma medida para atrair os empresários, não cobrando taxas municipais às empresas com sede no concelho. Nem um conseguiu conquistar.

Grande parte da população ativa trabalha no setor público, nomeadamente na autarquia, que tem cerca de 400 funcionários.
A MFS era o maior empregador privado do concelho. Os outros privados têm um quadro de pessoal bem mais reduzido. Por exemplo, a Cooperativa Agrícola de Moura e Barrancos emprega à volta de 50 trabalhadores; a Sociedade de Águas Castello, 12.

“Os nossos governos também não ajudam, podiam puxar pelo interior e não fazem nada. Ainda agora, nesta discussão sobre o novo aeroporto, podiam apostar no aeroporto de Beja, que tem a pista maior e ajudava a desenvolver um bocadinho a região, mas vão para o Montijo”, queixa-se Paula Paulino, de 34 anos. Trabalhava na fábrica, tal como o marido, David Paulino, 38 anos. Ela estava na soldadura e ele era manobrador de empilhadora.

“Tinha trabalhado como administrativa nos correios e estava num curso relacionado com painéis solares. Como o meu marido já estava na fábrica e davam preferência à família, fui para lá. Entrei muito novinha”, conta Paula. O casal mora em Amareleja, onde vivem muitos outros operários da MFS. Construíram uma casa num terreno da família e que estão a pagar. Têm duas filhas, de 7 e 14 anos. No fundo, uma história de vida muita idêntica à dos outros operários, 41 mulheres e 64 homens, entres os quais dez casais. Começaram novos, o trabalho deu-lhes sustento para se fixarem e iniciarem uma família. “Era um bom emprego e com um bom salário para a região”, diz Paula, concluindo: “Já não vou conseguir um salário igual.”

O estrangeiro é uma hipótese, mas Paula e David nem querem pensar em como vão reagir as filhas se tal acontecer. “Têm aqui a família, os amigos, tudo.” Paula tem um irmão em Paris e um tio e primos no sul de França, onde, aliás, já esteve a trabalhar. Poderá ser uma solução.

Europa está ficar sem produção.

A Acciona defende-se, pagando salários até o processo estar concluído. E salientando que o mercado está entregue ao comércio chinês, tornando-se praticamente inexistente na UE, mesmo na Alemanha, o país europeu líder na produção de painéis solares. Fonte da empresa disse ao DN que negociaram sem êxito durante dois anos para conseguirem um investidor para a MFS. Explicam: “A produção de painéis fotovoltaicos está concentrada na Ásia, especialmente na China, e atualmente já não é possível fabricar painéis competitivos na Europa, especialmente após a abolição dos direitos aduaneiros na UE sobre as importações de equipamentos fotovoltaicos dessa área geográfica. Quando construímos a fábrica – em 2008 -, o contexto de mercado era muito diferente e vimos um futuro. A evolução do mercado mundial, com uma queda espetacular nos preços dos módulos e uma concentração da produção na Ásia, mudou completamente esta perceção.”

A verdade é que encerraram a fábrica quando acabou o período obrigatório para garantir o emprego a mais de cem pessoas. Argumentam: “A empresa cumpriu plenamente todos os seus compromissos com as autoridades nacionais e locais, mantendo a atividade da fábrica durante dez anos com mais de cem empregados, através de dois investidores que a geriram consecutivamente. Pagou sempre os salários, mesmo quando a produção esteve parada. O último investidor anunciou a 10 de setembro de 2018 – sete dias depois de a UE eliminar as tarifas sobre a importação de painéis da China – que encerrava definitivamente a atividade em Moura e que iria transferir a produção para fábricas na Ásia. Ao longo de 2018 tentámos negociar a entrada de um terceiro investidor e, perante a situação, não houve outra opção senão fechar.”

A autarquia tem acompanhado o processo, já que o despedimento de 105 pessoas é “uma grande preocupação e determinante para o concelho”, diz Álvaro Azedo. “Tentámos perceber as oscilações na vida da empresa e era importantíssimo alertar o governo para a possibilidade de a fábrica fechar em 2018, quando terminava o período obrigatório para manter os 105 postos de trabalho. Os deputados da região foram sensibilizados para o problema. Em 2017, a fábrica teve a visita do embaixador chinês e do então secretário de Estado da Energia (Ascenso Simões), acreditámos que tivesse outro desfecho”, justifica o autarca.

“Pobre e sem beneméritos”.

Também os operários acreditaram que a fábrica tivesse continuidade, até porque ainda no ano passado compraram máquinas. E garantem que tinham um produto de qualidade. “A nossa equipa nunca tinha feito painéis, aprendeu e adaptou-se muito bem. Ninguém fazia melhor”, assegura Milton Raimundo. Agora já não acredita na reversão do processo: “É difícil um investidor querer ficar com as instalações e com 105 trabalhadores.”

Os equipamentos eram da Jinko, que os terá levado. Já as instalações são da Acciona. Álvaro Azedo diz que a câmara tem recebido propostas de eventuais interessados e que as quer conhecer melhor para as reencaminhar para a Acciona. Apresentou o problema ao secretário de Estado da Energia, João Galamba, que admite acompanhar a situação, mas remete o assunto para o ministro adjunto e da Economia, Pedro Siza Vieira. O seu gabinete diz que estão a acompanhar, sem detalhes.

Moura é um concelho pobre e com poucos apoios, mesmos os formais. Álvaro Azedo queixa-se, por exemplo, de ver recusadas propostas para ocupar desempregados através dos contratos emprego-inserção.

Acaba por ser a igreja a apoiar quem mais necessita, sobretudo idosos. “Moura é um concelho típico do interior do Alentejo: não há investimento. Fala-se muito em desenvolver o interior, mas os políticos fazem tudo ao contrário do que dizem. Estamos junto a Espanha, o Alqueva trouxe muitos turistas e depois não há infraestruturas. A única indústria que tínhamos era a fábrica de painéis solares. São cem pessoas que vão para o desemprego e, mesmo que não coloque em causa a sua sobrevivência, coloca em causa a dignidade humana”, lamenta o padre José Manuel. Diz que a paróquia é como o concelho, “pobre e sem beneméritos”. Criaram um banco alimentar com o dinheiro das esmolas, donativos representaram 4 581,88 euros em 2018.

Foto: © Paulo Spranger/Global Imagens


Share This Post On
468x60.jpg