Opinião (Rogério Copeto/ Oficial da GNR): DECISÕES JUDICIAIS NOS PROCESSOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
Provavelmente a única coisa boa do famigerado “Acórdão da Relação do Porto”, da autoria dos Juízes Neto de Moura e Maria Luísa Arantes, foi ter colocado na ordem do dia o assunto das decisões judiciais em processos de violência doméstica (VD).
Tenente-Coronel da GNR
Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna
Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação
Tal como eu, muitas foram as pessoas que não acreditaram da veracidade do referido acórdão, quando começou circular pelas redes sociais e a acumular emojis de tristeza 🙁 e de surpresa 😮, e que aqui nos escusamos de transcrever.
Mas bastou uma consulta ao artigo do Jornal de Notícias de 22 de outubro com o título “Juiz desculpa violência doméstica com adultério da mulher”, para perceber que o acórdão era verdadeiro e desculpava dois agressores de uma mulher, ambos por esta traídos, ex-marido e ex-amante, respetivamente, por ser adúltera, tendo imediatamente surgido uma onda de indignação no Facebook, onde se incluíam fotos de perfil, com a expressão “Sou adúltera”.
A referida notícia foi replicada milhares de vezes e a indignação atingiu todas as organizações e entidades que lidam com a VD, que manifestaram o seu repúdio pelo teor argumentativo do acórdão, onde até o executivo se manifestou, primeiro através da Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Lopes Monteiro, que declarou a sua estupefacção, concordando ainda com todas as manifestações de crítica em relação ao conteúdo do documento, e depois a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, referindo que “um caso não faz o sistema”, tendo ainda o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa manifestado a sua opinião sobre o assunto, conforme deu conta o I de 25 de outubro no artigo “Marcelo sobre acórdão polémico: “Todos os órgãos devem cumprir a Constituição de 1976”.
As críticas que a Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade se refere chegaram de todo o lado, como por exemplo, da União Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que sobre o acórdão disse ser “uma forma de pensar que está ultrapassada e é retrograda, com juízos de valor e moralismos que não são do nosso temos e deviam já ter sido ultrapassados”, da Associação de Apoio à Vítima (APAV), referindo que a decisão reflete um “total desfasamento face à realidade atual e face a uma sociedade que é felizmente muito menos tolerante a atos de violência”, da Amnistia Internacional, que considerou o acórdão “violador das obrigações internacionais a que Portugal está vinculado”, da Igreja que lamentou o recurso à Bíblia na fundamentação do acórdão, da Associação para a Intervenção Juspsicológica (AIJ), que considerou o acórdão “um atentado grosseiro aos direitos fundamentais das pessoas e à dignidade humana”, da Associação de Mulheres Juristas (AMJ) que lembrou que os “tribunais devem promover igualdade entre géneros”, da Ordem dos Advogados (AO) que informou que Juiz “pode não ter as condições mínimas” para voltar a julgar violência doméstica e do Presidente do Supremo que “pediu aos juízes prudência na linguagem”.
Mas apesar de tanta contestação o Ministério Público não vai poder recorrer da decisão, tendo a Procuradoria-Geral da República informado que a decisão proferida “não é passível de recurso”, podendo no entanto ser aberto um processo disciplinar aos juízes pelo Conselho Superior de Magistratura.
Também os cidadãos anónimos quiseram dar conta do seu desagrado com o teor do acórdão, onde o Movimento Democrático das Mulheres (MDM) assumiu destaque, ao apresentar uma queixa ao Provedor da Justiça, tendo ainda sido marcadas e realizadas manifestações de protesto contra o acórdão, cuja polémica teve também eco na imprensa internacional, onde o assunto foi divulgado pelo canal europeu Euronews, pela agência britânica Reuters e pelo Guardian.
Para além das manifestações e das queixas, foi também realizada a habitual “Petição”, sempre que as pessoas se indignam, conforme conta o Jornal de Notícias de 25 de outubro no artigo “Mais de cinco mil pessoas assinaram petição contra acórdão que cita a Bíblia”.
E durante o fim-de-semana ficámos todos a saber através da peça da RTP, de 28 de outubro, com o título “Juiz Neto Moura diz que o acórdão foi deturpado intencionalmente”, que o Juiz Neto de Moura “é contra a violência doméstica e que está a ser intencionalmente deturpado” e a Juiz Maria Luiza Arantes “terá admitido a alguns colegas que não leu a totalidade do polémico acórdão”.
Por último para referir que a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) emitiu um comunicado, no dia 26 de outubro, denominado “Comunicado sobre o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto num processo de violência doméstica”, onde declara que “não tem, do ponto de vista jurídico, competência para tomar qualquer iniciativa” nem pode “proceder à abertura de qualquer processo disciplinar”, apesar de ter recebido 55 queixas de cidadãos/cidadãs, “não pode deixar de expressar a sua preocupação pelo teor do referido Acórdão”.
Conforme referido, para além da indignação geral que o acórdão provocou, também trouxe o assunto das decisões judiciais em processo de VD para a discussão pública, cujo assunto merece uma profunda reflexão, por parte de toda a sociedade civil, podendo o estudo denominado “Violência Doméstica: Estudo avaliativa das decisões judiciais”, publicado este mês pela CIG, da autoria do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, no âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, ajudar nessa reflexão.
Sobre o referido estudo, Conceição Gomes, uma das suas autoras, deu ao Diário de Notícias uma entrevista no dia 30 de outubro, que foi publicada com o título “É um acórdão de um coletivo. Houve discussão?”, onde refere que “apenas em 20% dos processos houve sentença e das 70 condenações só sete corresponderam a prisão efectiva”, tendo concluído ainda que “que há uma desvalorização da culpa e que as narrativas dos tribunais denotam ausência de reflexão aprofundada e sistemática, permitindo uma maior permeabilização a discursos dominantes”.
Numa leitura ao capítulo das conclusões e recomendações do estudo “Violência Doméstica: Estudo avaliativa das decisões judiciais”, publicado pela CIG, verifica-se que uma das recomendações recorrentes é o desenvolvimento de mais ações de formação dirigidas aos magistrados, pelo que enquanto na GNR as necessidades de formação centram-se na 1ª linha, ou seja nos militares que primeiro contactam com as ocorrências de VD, no que diz respeito à justiça são os elementos de 2ª linha que necessitam dessa mesma formação.