Opinião (Rogério Copeto/ Oficial da GNR): MULHERES SOBREVIVENTES.
Para assinalar o “Dia Internacional da Mulher”, que se comemora hoje dia 8 de março, nada melhor do que aproveitar a data para homenagear todas as mulheres que sobrevivem aos crimes de que são vítimas, tais como, a mutilação genital feminina, os maus tratos, a violência doméstica, a perseguição, o casamento forçado, o tráfico de pessoas, a violação, o abuso sexual, a coacção sexual, a importunação sexual ou o lenocínio.
Tenente-Coronel da GNR
Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna
Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação
É verdade que qualquer pessoa, independentemente do género, pode ser vítima de qualquer um dos crimes elencados, assim como as mulheres podem ser vítimas de qualquer um dos crimes tipificados no Código Penal. Mas ao elencar os tipos de crime que referimos no início, pretendemos reforçar que existem crimes, cujas condutas criminosas incidem maioritariamente nas mulheres, existindo alguns que são exclusivos, do género feminino, como a mutilação genital feminina.
Ao nos referirmos ao conceito de “mulher sobrevivente”, pretendemos alargar esse conceito a um conjunto mais alargado de crimes, de que são vítimas as mulheres, sabendo no entanto que o conceito se aplica maioritariamente aos crimes cometidos no âmbito de relações de intimidade como a violência doméstica, o que nos parece redutor.
Assim, ao crime de violência doméstica acrescentámos alguns tipos de crime pertencentes ao grupo dos crimes contra a integridade física e outros pertencentes ao grupo contra a liberdade sexual, porque podendo todos ser praticados contra homens e mulheres, verifica-se que os crimes elencados são maioritariamente cometidos contra as mulheres, como a já referida mutilação genital feminina, a violação, o casamento forçado, o lenocínio ou a importunação sexual.
No entanto não incluímos os crimes do grupo da autodeterminação sexual, porque enquanto os crimes contra a liberdade sexual punem os comportamentos que atentam contra o direito de cada pessoa decidir livremente da sua vida e das suas práticas sexuais, os crimes contra a autodeterminação sexual punem as condutas que incidem sobre as vítimas, que atendendo à sua idade, não estão ainda em condições de se autodeterminarem sexualmente, pelo que mesmo não existindo violência, são susceptíveis de prejudicar o livre desenvolvimento da sua maturidade e vida sexual.
Pelo atrás referido facilmente se conclui que as mulheres são vítimas de um conjunto maior de crimes do que os homens e por isso é de inteira justiça, que existam em todas as sociedades, respostas adequadas para proteção e apoio às mulheres sobreviventes.
Mulheres que sendo vítimas de um dos crimes referidos, em qualquer altura da sua vida ou mesmo durante toda a sua vida, nunca o denunciam, mesmo quando o sofrimento é vivido durante anos, e só quando a violência atinge níveis de grande gravidade, levando ao tratamento e até internamento hospitalar, esse facto chega ao conhecimento das autoridades, porque nem as campanhas de prevenção serão suficientemente boas, nem a sociedade estará a cumprir o seu papel para combater o flagelo de que as mulheres são vítimas, culminado não raras vezes na morte da mulher.
Para exemplificar uma destas situações, tivemos oportunidade de dar a conhecer há precisamente dois anos atrás no artigo com o título “Dia Internacional da Mulher: Violência Doméstica, fenómeno criminal com visibilidade”, uma dessas mulheres sobreviventes, que aproveitamos para recordar.
Numa entrevista para um programa da manhã, de um canal de televisão, uma mulher ao regressar do hospital, após ter sobrevivido a uma tentativa de homicídio, por parte do seu marido, que a esfaqueou 10 vezes, justifica tal comportamento, pelo facto do mesmo estar desempregado e que não teve intenção de a matar, desvalorizando o facto da faca se ter partido, quando o agressor a tentava espetar na sua cabeça, facto que a terá salvo, continuando no entanto a amar o seu marido e por isso o perdoa.
Apesar de já ter ouvido várias vítimas de violência doméstica desculpar o agressor, quase sempre dando conta que “Ele só me bate quando está bêbado” e que “Ele é um bom pai e nunca bateu nos filhos”, esta entrevista foi para mim, mais uma aprendizagem sobre o fenómeno da violência doméstica, devido à forma como aquela mulher justificava o comportamento do agressor, após ter sobrevivido a uma tentativa de homicídio.
E acredito que a única visita que este agressor terá na cadeia será a desta mulher, que sobreviveu a anos de violência e a uma tentativa de homicídio, por parte do seu marido que jurou amar para sempre.
A sua atitude de desculpabilização do agressor, para a maioria das pessoas será difícil de entender, mas representa o a realidade da nossa sociedade, onde a mulher é vista como “propriedade” e os agressores, perante a possível de separação, tomam a derradeira decisão “Não és minha, não és de ninguém”.
É este comportamento que poderá explicar, que todos os anos sejam mortas pelos respectivos companheiros dezenas de mulheres, de todos as classes sociais, sendo que metade dessas mulheres apresentam queixa antes de serem assassinadas, conforme ficámos a saber através do artigo da edição de ontem do Diário de Notícias, com o título “Quase metade das mulheres assassinadas já tinha apresentado queixa”, onde é referido que “um estudo sobre 43 casos de femicídio (homicídio de mulheres), cometidos entre 2010 e 2015, na zona da Grande Lisboa, revela que 46,4% das vítimas já tinham apresentado queixa por violência doméstica às autoridades”. O estudo referido é da responsabilidade da PJ e denomina-se “Homicídio, femicídio e stalking no contexto das relações de intimidade” e foi ontem apresentado na Escola da PJ no Seminário: “Homicídio, femicídio e stalking no contexto das relações de intimidade: contributos para o estudo da realidade portuguesa”.
Urge por isso mudar comportamentos, sendo na formação dos mais novos, que se deve apostar, onde as campanhas de informação sobre violência no namoro têm um papel muito importante na prevenção do fenómeno, porque infelizmente existem raparigas que acham normal que o seu namorado a proíba de vestir esta ou aquela peça de vestuário e que a impeça de falar com outros rapazes, justificando o comportamento do namorado, pelo facto de a amar. Ninguém necessita deste tipo de amor, porque este amor mata. A rapariga que desculpa hoje o seu namorado, amanhã será a mulher que irá desculpar o marido que a tentou matar, se conseguir sobreviver…
Termino fazendo a divulgação de um manual com o título “Guia de Educação Não Formal para Mulheres Sobreviventes de Violência”, que se constitui como um “Produto Educativo Europeu”, financiado pela Comissão Europeia e que teve como colaborador nacional a Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV). O manual tem como destinatários as mulheres sobreviventes de violência doméstica e os profissionais que trabalham nesta área, preenchendo dessa forma uma lacuna a nível dos recursos na área da educação não formal de adultos para mulheres sobreviventes de violência doméstica.
A todas as mulheres, desejo um bom “Dia Internacional da mulher”.