Opinião (Rogério Copeto/ Oficial da GNR): RETIRADA DE CRIANÇAS – 1ª Parte.
O tema da promoção dos direitos e protecção de crianças e jovens em perigo já foi aqui no LN abordado diversas vezes, nomeadamente nos artigos: “Super-heróis sem capa”; “A GNR e a PSP na proteção de crianças em perigo”; “A ‘nova’ lei de protecção de crianças e jovens em perigo”; “As Comissões de Proteção de Crianças e Jovens” e; “As crianças e a GNR”.
Tenente-Coronel da GNR
Mestre em Direito e Segurança e Auditor de Segurança Interna
Chefe da Divisão de Ensino/ Comando de Doutrina e Formação
E por ser um tema ao qual tenho dedicado alguma atenção, trago desta vez ao LN o assunto da retirada de crianças, no âmbito do Sistema de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo (SPDPCJP), cujo sistema se encontra subordinado à Lei n.º 142/2015 de 8 de Setembro, que procede à segunda alteração da “Lei de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo” (LPDPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, que tem como objeto “a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral”.
A referida Lei refere no seu artº 3º, cuja epigrafe é “Legitimidade da intervenção”, que “a intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”. Cabendo a promoção dos direitos e a proteção da criança e do jovem em perigo às Entidades com Competência em Matéria de Infância e Juventude (ECMIJ), às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) e aos Tribunais, cuja intervenção se encontra orientada pelos princípios: do interesse superior da criança e do jovem; da privacidade; da intervenção precoce; da intervenção mínima; da proporcionalidade e atualidade; da responsabilidade parental; do primado da continuidade das relações psicológicas profundas; da prevalência da família; da obrigatoriedade da informação; da audição obrigatória e participação e; da subsidiariedade.
Estas primeiras linhas servem como introdução ao tema e para esclarecer o(a)s leitore(a)s que não estejam familiarizado(a)s com a temática, sendo que objetivo do artigo abordar a retirada de crianças, realizadas no âmbito do LPDPCJP, com especial referência ao artº 91º que tem como epigrafe “Procedimentos urgentes na ausência do consentimento” e que sofreu algumas alterações, com entrada em vigor da Lei 142/2015, passando a ser um procedimento obrigatório para todas as ECMIJ, que verifiquem uma situação de perigo atual ou iminente para a vida da criança ou jovem, deixando de ser, como alguns autores defendiam, exclusivo das Forças de Segurança (FS). Também a sua aplicação é alargada às situações de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem, e não só à integridade física, como na anterior redacção. Sendo que a alteração mais relevante foi a substituição das palavras “…e haja oposição…” por “…na ausência de consentimento…”, o que alarga a sua aplicação, uma vez que não há necessidade da oposição expressa dos detentores do poder paternal, bastando a ausência do consentimento, o que muitas vezes acontece, por os mesmos não estarem presentes, aquando da situação de perigo e por isso inibir a aplicação do artº 91º.
Consideramos que as alterações introduzidas ao artº 91º, apesar de subtis, são essenciais para esclarecer um procedimento que pode salvar vidas e que por diferentes interpretações do mesmo, motivaram no passado alguns conflitos entre as ECMIJ, as CPCJ, as Forças de Segurança (FS) e o Ministério Público (MP), que estamos em crer deixaram de existir, passando o seu nº 1 a ter a seguinte redação “Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas no artigo 7.º ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua proteção imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais”. As entidades referidas no artº 7º são as já identificadas ECMIJ.
Sobre a retirada de crianças, existem duas situações possíveis: em cumprimento de mandado judicial emanado pelo Tribunal ou; em cumprimento do artº 91º. Pelo que se na primeira situação não existem dúvidas quanto ao seu cumprimento, na segunda opção poderão não estar reunidos os pressupostos para a sua aplicação, por isso importa conhecer este normativo, por ser excepcional, e que foi introduzido na LPDPCJP, permitindo a retirada urgente duma criança ou jovem em situação de perigo iminente para a vida ou integridade física ou psíquica, e haja ausência de consentimento dos detentores do poder paternal ou de quem tenha a guarda de facto.
Assim, no atual modelo legal de protecção de crianças e jovens em perigo, vigente desde Janeiro de 2001, apesar de existirem outros procedimentos de maior ou menor exigência na sua concretização, não temos dúvidas que os relativos à retirada de crianças são aqueles que maior constrangimento causam aos seus executantes, especialmente aos elementos das FS, quer de âmbito operacional, quer de âmbito legal. Além disso, há a considerar os danos emocionais causados à criança ou crianças alvo da retirada, considerando-se por isso que o procedimento de urgência é aquele que apresenta maiores dificuldades, devendo este procedimento, e de acordo com os princípios que regem a LPDPCJP, ser adoptado em último recurso e só quando os pressupostos para a sua execução estejam reunidos, nem sempre claros para quem tem de os executar, e por isso propomo-nos aprofundá-los de seguida.
Conforme referido a retirada de uma criança constitui-se como um procedimento muito sensível, devendo a forma de atuação por parte do elementos das FS ser avaliada caso a caso e planeada ao pormenor, conforme é planeada uma busca domiciliária ou uma detenção de um indivíduo de elevada perigosidade, pelo que as FS, não devem descurar essa avaliação e esse planeamento, de modo a que a retirada de uma criança seja executada em cumprimento dos princípios atrás elencados, nomeadamente o interesse superior da criança e do jovem, a intervenção mínima, e a proporcionalidade e atualidade. E tendo em conta a minha experiencia, porque várias vezes tive de proceder à retirada de crianças, considero que o procedimento deve ser executado por militares à civil e com formação adequada, para que desse modo a imagem das FS não fique diminuída, nem provoque nas crianças um sentimento de repulsa aos elementos das FS, e se possível, em local que não o domicilio da criança ou do jovem, como por exemplo o jardim-de-infância ou a escola.
Para que fique registado, nem sempre concordei com a forma como algumas retiradas de crianças foram executadas, durante os anos em que desempenhei as funções de Comandante de Destacamento, por considerar não estarem reunidos os pressupostos do artº 91º, tendo-o referido na altura e a quem de direito, pelo que importa referir quais são esses pressupostos e que devem estar sempre reunidos, para cumprimento do artº 91º dentro da legalidade. São três os pressupostos (os primeiros dois são requisitos subjetivos e o terceiro, um requisito objetivo), que são necessários estarem reunidos cumulativamente para que o mesmo possa ser executado e que a seguir identificamos: 1º Pressuposto – perigo atual ou iminente; 2º Pressuposto – que esse perigo seja contra vida ou integridade física ou psíquica da criança ou do jovem; 3º Pressuposto – haja ausência de consentimento dos detentores do poder paternal ou de quem tenha a guarda de facto.
Para além da necessidade de estarem reunidos os pressupostos atrás referidos verifica-se a necessidade da intervenção do Tribunal ou das FS após a tomada de medidas adequadas para protecção imediata da criança ou jovem, bem como o cumprimento do princípio do interesse superior da criança ou jovem em perigo e do princípio da proporcionalidade e atualidade. Ou seja, qualquer entidade que execute um procedimento de urgência na ausência de consentimento deve ter em mente estes princípios, em que a intervenção deve ser feita pondo em primeiro lugar o superior interesse da criança ou jovem e ser necessária, adequada, proporcional e atual.
No próximo artigo (ainda esta semana) iremos abordar em mais pormenor os três pressupostos atrás referidos, bem como o papel das FS na aplicação do artº 91º.