Opinião (José Lúcio/ Juiz): A visibilidade da Justiça.


Vive-se actualmente um momento histórico em que a Justiça assumiu um protagonismo e uma projecção no espaço público que não seria imaginável ainda há relativamente pouco tempo.

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

Pensamos nos casos de Itália, Brasil ou Espanha, mas também em Portugal e já agora em discussões que correm noutras paragens (Polónia ou Turquia, Hungria ou Alemanha, Egipto ou Venezuela).

Deve dizer-se liminarmente que o fenómeno não é manifestamente sinal de saúde das sociedades em que se desenvolve.

Pelo contrário, parece estar claramente associado à incapacidade de resposta dos sistemas políticos em questão face aos problemas com que se confronta, desde a corrupção a bloqueios institucionais de vária ordem.

Assistimos portanto, com frequência, a movimentos de transferência, em que a conflitualidade política passa a desenvolver-se no seio das instituições do judiciário e através dos mecanismos originalmente concebidos para matéria especificamente jurídica.

Não é bom que tal aconteça. A separação de poderes tem na sua origem e justificação, de forma implícita ou explícita, também uma separação de base funcional. As funções política e jurisdicional coexistem mas não devem misturar-se, sob pena de perversão de ambas.

Resta todavia o facto que temos diante de nós: as crises que assolam as sociedades contemporâneas fizeram com que estas se confrontem com as incapacidades e insuficiências dos respectivos sistemas políticos e daí resulta uma tendência crescente para o recurso ao judiciário e consequentemente uma nova visibilidade para a Justiça.

Esta, por sua vez, vive mal com essa visibilidade acrescida. A Justiça nunca esteve habituada às luzes mediáticas, e muitos dos seus agentes deixam-se perturbar com esse grau de exposição.

Alguns, diga-se, cedem aos deslumbramento – e esquecem-se que a oportunidade momentânea e efémera de rivalizar com o Ronaldo ou a Madonna não é compatível com a sua função específica e no final será esta a prejudicada.

Outros vivem com sofrido desconforto e incomodidade esta nova realidade. O hábito enraizado do anonimato discreto em que sempre vivemos torna difícil a adaptação a este contínuo sobressalto dos holofotes e a consequente vigilância de todos os passos, gestos, palavras e atitudes.

Impõe-se dizer que aquilo que não tem remédio remediado está. E nesta sociedade em que todos temos de viver e conviver, marcada pela era da comunicação e pela busca obsessiva da informação, ainda que inútil, as instituições e as pessoas terão que encontrar o necessário equilíbrio e prosseguir com serenidade o seu caminho, no exercício das funções que a cada um competem.

Até porque existem certamente outros aspectos em que a acrescida visibilidade tem que considerar-se de forma positiva. O apagamento em que as instituições judiciárias estavam acostumadas a cumprir de modo rotineiro as suas obrigações contribuiu poderosamente para a sua progressiva diminuição aos olhos da sociedade em que elas se inserem, em confronto com outros poderes que por natureza possuem à partida uma notoriedade e um protagonismo mediático incomensuravelmente superiores.

Ora na sociedade altamente mediatizada que caracteriza a nossa época é realmente verdade que aquilo que não aparece esquece, e o cidadão comum tem a tendência instintiva para desvalorizar o que ficar de fora do seu círculo de referências. Os tribunais dificilmente são sentidos como órgão de soberania por uma população que a cada momento recebe avalanches de informação sobre a vida dos órgãos de soberania… mas nada quanto aos tribunais. Logicamente, a expressão e o conceito órgão de soberania passam a ser associados apenas aos outros.

O desconhecimento também pode matar. Por isso mesmo temos activamente defendido o imperativo dessa visibilidade a que chamamos de positiva. Na nossa esfera de actuação, naturalmente modesta (falamos de um ignoto tribunal de província) temos prosseguido uma estratégia comunicacional proactiva e assim procurado garantir a existência de canais de comunicação com a população que servimos, de maneira a que todos saibam que existimos, trabalhamos, servimos, estamos cá. Para isso temos tido a colaboração inestimável dos meios de comunicação social regional e local, despertados que foram para a relevância da actividade do judiciário.

Creio que o balanço é inegavelmente positivo. Os nossos concidadãos conhecem-nos melhor, implantou-se uma familiarização com a temática dos tribunais e da justiça que ainda há uns anos era impensável. Acredito que também nos apreciem mais. Mas, ainda que assim não aconteça, aos que permanecem críticos oferecemos desta forma uma nova possibilidade de diálogo, que a nossa tradicional mudez certamente não proporcionava. Já não é pouco.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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