Aproximando-se o momento de deixar o cargo de juiz presidente da Comarca de Beja, que desempenho desde que esta entrou em funcionamento, no já afastado ano de 2014, não posso evitar toda a complexa mescla de emoções e sensações diversas que são naturais nestas despedidas.
Juiz
Surge já a nostalgia de um lugar que preenchemos e nos preencheu a vida durante um apreciável pedaço dela, sente-se a impressão reconfortante de ter tentado cumprir, persiste a frustração de não ter conseguido alcançar tudo aquilo que foi pensado e desejado, subsiste a inquietação pelo que virá a seguir.
São difíceis os discursos de despedida. Uma destas noites dei por mim a recordar um escrito célebre, o estranho artigo que o Prof. Manuel Rodrigues, então Ministro da Justiça, publicou em 31 de Dezembro de 1938 no jornal O Século.
Publicou sem identificação, o que adensa o mistério e excita a imaginação dos inúmeros intérpretes que têm referido o texto. O que quereria ele dizer? Generalizou-se entre os que aludem ao texto o entendimento de que o visado era Salazar. Explicando: o autor, Ministro da Justiça, andaria de mal com o Presidente do Conselho, e estaria a meter-se com ele quando escreveu o artigo “O homem que passou”.
Sempre torci o nariz a essa interpretação. Aprecie-se o tom, e digam se não será autocomiseração:
“O homem que passou é como o ano que passa. No momento mesmo em que corta a meta da eternidade, o ano que passou é mal querido e insultado. Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão, depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamor, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerências. Só se distingue o homem que passou do ano que passa, em que este já se perde na eternidade quando o injuriam, não ouve as injúrias nem conhece as ingratidões; e o homem que passou é ainda vivo quando ouve a recriminação onde antes ouvia o louvor e sente a ingratidão onde antes havia o agradecimento.”
No final de 1938, todos os sinais apontavam para o reforço e continuidade de Salazar. Se o sr. Ministro da Justiça andava realmente aborrecido com a consolidação política do Chefe, e porventura frustrado com o desabar das suas próprias expectativas (há autores credíveis a informar que uma e outra hipótese são verdadeiras, tanto a desilusão pessoal com Salazar como a frustração pelo esfumar de esperanças que terão existido) a verdade é que me parece muito mais provável que estivesse a referir-se a si próprio.
“O homem que passou” era ele.
Pode ser que não seja assim, e estivesse apenas a fazer literatura. Afinal o autor manteve-se no seu posto de Ministro da Justiça quase dois anos mais, saindo tão só na remodelação de 1940.
Todavia, a ter sido escrito a pensar em alguém aquele escrito crepuscular publicado no último dia do ano de 1938 parece muito mais apontar para o próprio autor, e para um estado de espírito que não era dos mais brilhantes.
Em todo o caso defendia a conveniência da submissão ao destino:
“Passar é um destino do homem, que em regra a ele se submete, mas há quem não queira passar; ou melhor, quem não saiba determinar o momento em que passou. Ora a vida é um grande cortejo que segue cadenciado. Aquele que pretende deter-se põe em desordem o cortejo e gera a confusão, e por isso se descompõe nas atitudes com que resiste e perturba os que nele seguem. E então, onde houve louvores há agora censuras, onde houve carinho há agora aspereza e são até os que antes lhe abriram caminhos que o afastam agora com gestos desabridos.”
Compreendo muito bem o ilustre professor e ministro. Há sempre um certo desgosto em ter passado. E ele deixou marcas difíceis de apagar, se pensarmos nas reformas de que foi responsável. Durante décadas a base de todo o direito processual entre nós foi o Código que ele introduziu, trazendo ordem e racionalidade aos caos anterior.
Longe de mim comparar-me com o grande jurista da Bemposta, a quem costumava cumprimentar no seu busto austero quando ali passava a caminho de Abrantes. A não ser nesse pequeno pormenor de também eu sentir aqui e agora que sou já um homem que passou.
(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)