Opinião (José Lúcio/ Juiz): Sobre a confiança na Justiça.


Com frequência deparamos nos grandes meios de comunicação social de massas com comentadores a lamentar em tom grave e compungido a má imagem da justiça.

José Lúcio

Juiz Presidente da Comarca de Beja

O mais curioso no fenómeno é que grande parte deles são conhecidos precisamente por tudo fazer para a denegrir.

Nesse aparente paradoxo reside um dos pontos a justificar reflexão quando se fala da imagem ou das imagens da justiça – deixando sempre na sombra os interesses, as vontades e os preconceitos que se agitam por detrás daqueles que no universo mediático actual detêm os mecanismos que fazem e desfazem as imagens que o consumidor absorve.

Todavia, que o problema existe não pode haver dúvidas – sobretudo para aqueles que no dia a dia têm por função contribuir para a criação da atmosfera de confiança que se deseja na relação entre os cidadãos e uma das funções essenciais do Estado.

Os tribunais administram a justiça em nome do povo, diz o art. 202º da Constituição da República Portuguesa, e repetem enfaticamente os preceitos iniciais das Leis Orgânicas dos Tribunais (art. 2º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, e art. 1º da anterior LOFTJ).

E o problema está em que o povo, quando ouvido a propósito, parece não se rever nesse exercício. Os índices de confiança na justiça, segundo os estudos e os estudiosos disponíveis, desceram a níveis lamentavelmente baixos.

Essa realidade coloca sérios embaraços à própria legitimidade do exercício, ou à legitimação da acção das instituições do Estado, e dos seus agentes, nesse âmbito.

E coloca também sérios problemas de eficiência aos órgãos encarregados de levar a cabo tal execução, pois essa eficiência, em última análise, não pode desligar-se dos sentimentos dos destinatários a esse respeito (não pode considerar-se satisfatória a realização da Justiça, quando persiste na generalidade da população a sensação de que Justiça não se fez, nem será feita pelas instituições vigentes).

O pleno conseguimento dos seus objectivos por parte dos órgãos encarregados da realização da Justiça depende, em última análise, da aceitação e da interiorização pela comunidade do exercício efectivamente consumado das funções respectivas.

Impõe-se porém frisar que é importante que não se confunda a confiança na Justiça, de que se fala, com a popularidade fácil, ou com populismos demagógicos, muito provavelmente incompatíveis com a realização de qualquer ideia de Justiça.

A administração da Justiça institucionalizou-se, como conquista civilizacional, para superar tempos e modelos de sociedade em que a estabilização de alguma relação social em situação de crise assentaria na discricionariedade e na força. Nessa medida, não é consentânea com o favor das multidões, nem pode sujeitar-se aos caprichos das massas, quase sempre formados com base em impulsos irreflectidos e cegos, não raramente manipulados.

Há que ter sempre presente que a confiança ou a desconfiança não existem e nascem espontaneamente, e também não dependem apenas do que seja a realidade objectiva da administração da Justiça a que se reportam.

Na verdade, esses estados de espírito, de confiança ou de desconfiança, e as convicções com elas correlacionadas (v. g. no respeitante ao funcionamento dos tribunais, à competência dos profissionais desses sectores, à presença ou ausência de corrupção, etc.) dependem muito mais das imagens, das percepções, implantadas nos sujeitos que integram a opinião pública.

Ou seja, as tais imagens e percepções são mais determinantes do que a realidade objectiva de que se fala na formação dos referidos índices de confiança ou de desconfiança. Que é assim comprova-se pela circunstância por vezes apontada de que não é idêntica a posição daqueles que por algum motivo tiveram contacto pessoal com os meios judiciários e a daqueles que nunca na sua vida tiveram contacto algum com esse universo.

Ora a percentagem daqueles que nunca tiveram qualquer experiência judicial (por ex.: nunca entraram num tribunal) ultrapassa largamente o número daqueles que por um motivo ou por outro já tiveram esse contacto, pelo que na formação dos tais índices de confiança entram com muito maior peso, por imperativo estatístico, aqueles que não têm nenhum conhecimento pessoal da realidade sobre a qual são chamados a opinar.

Observa-se assim, o que se pretende salientar, que as posições sobre a Justiça expressas por aqueles que dela têm uma experiência própria é mais favorável a esta do que as opiniões daqueles que com ela nunca contactaram. E esta observação afigura-se de capital importância, pois que se estes nunca tiveram oportunidade de por si mesmos formar as suas opiniões tem que concluir-se que as imagens que possuem, as percepções com base nas quais as formaram, foram fornecidas por outrem, necessariamente.

O fornecimento dessas imagens ao grande público, o alimentar das percepções com que se vai formando e consolidando a confiança e a desconfiança, está naturalmente, no nosso tempo e nas nossas sociedades, entregue aos grandes meios de comunicação de massas, por natureza enormes fábricas de imagens que despejam ininterruptamente sobre a mole imensa dos destinatários, normalmente meros recipientes passivos.

O saber sobre a administração da Justiça daqueles que nunca tiveram contacto pessoal com a mesma é efectivamente um saber de ouvir dizer, mas geralmente não por ouvir dizer a pessoa determinada, daquelas que falam por experiência própria – visto que estas possuem impressão mais favorável do que as primeiras.

O saber dessa generalidade da população, virgem de qualquer conhecimento directo, forma-se pelo contacto com os meios de comunicação, e são sobretudo estes, e não a realidade, que determinam o que cada um pensa sobre esta.

Pode concluir-se de tudo isto, sem dúvida, que a realidade é melhor do que a pintam, e tal conclusão traz algum conforto. Todavia, o que pretendemos sublinhar é que a confiança na Justiça é hoje efectivamente um problema gravíssimo na sociedade portuguesa e que equacionar os modos para o enfrentar implica ter sempre presente o papel determinante que a comunicação social assume na criação e na transmissão das imagens e percepções de que depende a formação no público dessa confiança, ou no suscitar da correspondente desconfiança.

Daí a relevância decisiva, cada vez mais premente, do imperativo de comunicar a Justiça, ultrapassando e vencendo o ruído que afecta a qualidade das imagens transmitidas. Porque, obviamente, tendo por certo o que ficou dito, essas imagens não estão a ser fiéis cópias da realidade existente, antes a apresentando distorcida e piorada (não se discutindo aqui se tal acontece por ignorância, ou por dolo, ou por algum outro imperativo que conduz ao afastamento da verdade, frequentemente muito mais desinteressante do que uma boa estória).

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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