Opinião (José Lúcio/ Juiz)A crise da Justiça.


Todos sofrem momentos em que desesperam dos seus afazeres quotidianos. São aquelas horas em que o cozinheiro sente que já não suporta tachos e panelas, o alfaiate abomina roupas, tesouras e dedais, o barbeiro olha com horror barbas e cabelos, o médico não pode mais com clínicas, consultórios e doentes.

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

Por norma esses instantes são fugazes e raros, e depois cada um volta às suas rotinas, com suspiros de alívio ou de resignação. São crises, mas passam.

Entre os juízes não é diferente (pode ser surpreendente mas eles são humanos). Porém, como se sabe, juízes não podem ter estados de alma, e espera-se que sejam constantes e regulares como máquinas bem afinadas.

Entenda-se, neste caso ainda é menor a margem para fraquezas. Vamos então em frente. Eu posso reconhecer, muito envergonhado, que eles são pessoas, que têm emoções e sentimentos, família e amigos, e até uma vida pessoal. Todavia, o essencial permanece – não há lugar para crises. Aqui não há crises.

E o mesmo se pode dizer das gentes da Justiça em geral – aqui não há lugar para crises.

Portanto, podemos assentar em que a falada crise da Justiça não pode confundir-se com crises dessas, pessoais, subjectivas, individuais. Trata-se certamente de outra coisa. Até podemos andar todos por aqui angustiados e desmotivados que não será por isso que se fala em crise da Justiça.

Então, o que se quer dizer quando se menciona a crise da Justiça?

Confesso que tenho feito um esforço, mas ainda não alcancei o significado do lugar comum. E o certo é que não há dia nenhum em que não ouça falar dessa tal crise. Parece ser consensual, a tal crise da Justiça.

E todavia ninguém explica o que seja, em que consiste.  Não pode ser porque ela funcione hoje pior do que funcionava há dez, há vinte, há trinta ou há cinquenta anos. Na realidade não funciona pior (sejam quais forem os indicadores que se utilizem conclui-se invariavelmente que está melhor). E que não pode ser esse o motivo também se deduz da circunstância de em todas essas épocas também ter sido recorrente a mesma figura de estilo – a crise da Justiça. Sempre se falou em crise da Justiça.

Fica-se sem saber se ela esteve sempre em crise, se é da sua natureza estar em crise, ou se afinal não há crise nenhuma.

O que me intriga é que ninguém procure explicitar o que pretende dizer quando fala da tal crise. Parece haver uma terrível opacidade no pensamento da crise. Bem como nos remédios para a crise.

Nos últimos tempos tem sido presença constante nos noticiários sobre a Justiça o anúncio de múltiplas vontades reformistas, naturalmente dedicadas a combater a crise. O governo quer aprofundar reformas, para ultrapassar a crise, e as oposições não lhe ficam atrás – todos querem reformas, e que não sejam pequenas. Mais recentemente tem surgido a alusão a mexidas no texto constitucional, com o objectivo, mais uma vez, de resolver a crise da Justiça. Porém, o mistério continua – ninguém revela quais são as propostas concretas, quais são as alterações defendidas.

Ninguém parece querer dizer concretamente o que está mal e o que propõe para que esteja bem.

Assim fico desconfiado (eu sou naturalmente pessimista e um tanto desconfiado). Fico com a sensação de que são outras as crises que afligem os que constantemente referem a crise da Justiça – e que, no fundo, a ânsia de intervir nesta área deve-se mais à preocupação com essas outras crises (cada um com a sua), e à tentação de as resolver por essa via, do que propriamente com intuitos sinceros de encontrar soluções para os problemas do sector, que também os há.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor)


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