Opinião (José Lúcio/ juiz presidente): O estranho caso do pedido que nunca existiu.


Tribunal pede que morto seja alvo de perícia médico-legal psiquiátrica”. Não pediu, é mentira. Mas foi assim mesmo que a notícia desabou sobre o país, como vaga imparável, mais alta e poderosa que todas as ondas da Nazaré.

José Lúcio

Juiz Presidente

Comarca de Beja

Alguém viu o pedido? Deve constar de um papel qualquer, deve ser possível verificar o facto. Mas não, ninguém viu, ninguém tentou ver. Não era possível. Nunca existiu. A afirmação é falsa.

Vale a pena contar com mais pormenor.

Conforme ainda se pode constatar, o Diário de Notícias inseriu na sua edição online, pelas 00:10 horas do dia 23 de Janeiro último, a pérola em causa, sob o título “Tribunal pede que morto seja alvo de perícia médico-legal psiquiátrica”.

O texto está recheado de pormenores fantásticos: “a notificação indicava o local onde a perícia se poderia desenvolver: a campa do falecido e o respetivo cemitério.

Já dez minutos antes (pelas 00 horas), no mesmo sítio, a própria subdirectora tinha denunciado ao mundo o terrível escândalo:

A diretora de psiquiatria do hospital de Beja recebeu há dias uma notificação do tribunal: uma magistrada pedia-lhe que fosse feita uma avaliação psiquiátrica a um morto no âmbito de um processo de impugnação de herança. Não era engano: a morada indicada de contacto era a campa do falecido no cemitério onde está enterrado há mais de um ano.

Perante tal enormidade, seria de esperar que a ilustre subdirectora do DN, tal como o seu não menos ilustre colega, tivesse tentado verificar os factos junto da fonte onde ambos beberam. Afinal de contas trata-se de documentação oficial, se a notificação existe pode a todo o tempo ser consultada de modo a confirmar o seu conteúdo.

Todavia, a anteceder tais publicações não houve qualquer diligência no sentido de confirmar os factos descritos (a ter existido não haveria notícia), ou pelo menos assegurar a audição da entidade visada (em tempos era costume procurar ouvir o outro lado).

E nessa manhã de 23 os sítios noticiosos pequenos e grandes apressaram-se a repetir, copiando e colando, incessantemente, para que ninguém ficasse privado de tão espantosa revelação.

A fonte mencionada foi tão só uma psiquiatra que exerce as funções de directora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de Beja, que teria escrito sobre tão anómala ocorrência na sua página no facebook.

Desta forma, tão simples e banal, foi o país inteiro colocado perante a bizarra descoberta: “Tribunal pede que morto seja alvo de perícia médico-legal psiquiátrica”.

Quem pode duvidar do Diário de Notícias? É um jornal que, segundo o seu estatuto editorial, “tem como principal objetivo assegurar ao leitor o direito a ser informado com verdade, rigor e isenção.” E mais: “o DN preza um conceito de seriedade jornalística e não cede ao apelo fácil do sensacionalismo.”

Será assim, será – noutros casos, que não neste.

O que é certo é que a calúnia lá saiu, apimentada com comentários criativos a reforçar o escândalo: “Tribunal pede que morto seja alvo de perícia médico-legal psiquiátrica”. O Tribunal pediu, e até indicou onde devia ser feita a perícia – a campa do falecido! Nem mais.

Aqui chegados, parecem impor-se umas pequenas observações.

Em primeiro lugar, deve dizer-se que se afigura desnecessária a polémica em volta do facebook. Neste caso concreto a questão é outra. Uma mentira é uma mentira, seja no facebook ou noutro sítio qualquer. E o que podemos ler no DN, em termos factuais, é absolutamente mentira. Não se trata de matéria opinativa, de uma versão oponível a outra versão, trata-se de uma realidade objectiva, documentada, insofismável. Ninguém pediu a realização de uma perícia psiquiátrica a um morto. Nem o expediente em causa permite alguma confusão.

Para que se perceba o ocorrido, passo a sintetizar. Como qualquer leigo entendeu, no caso existe um processo onde é impugnada a validade de um testamento com base na alegação da incapacidade do testador (estaria afectado de “síndroma demencial”). E as partes que fazem essa alegação apresentaram um requerimento, através da sua advogada, em que solicitam ao tribunal que determine a avaliação da capacidade testamentária do autor do testamento à data da outorga do mesmo, tendo por base os elementos clínicos que documentem o seu estado de saúde de então.

O requerimento é absolutamente banal, sem margem para equívocos (podia ser tirado de um qualquer formulário, como um modelo/tipo).

Na sequência do requerimento a juíza nada decidiu. O curto despacho diz simplesmente, dirigindo-se à secretaria, que solicite informação sobre se é viável o requerido pelos autores.

E a secretaria (ao ler a notícia ainda podia pensar-se que pudesse haver um lapso na redacção da correspondência!) enviou então um ofício ao Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental com esse preciso teor.

Sob a epígrafe a negrito “assunto: pedido de informação” pode ler-se que se solicita que informe os autos sobre se é viável o requerido pelos autores, juntando-se cópia do requerimento. Apenas isto, e nada mais. Um pedido de informação!

O ofício recebido no DPSM, juntamente com as cópias que o acompanharam, do requerimento, do despacho e da restante documentação existente no processo, não permitem de modo algum a confusão sobre um pedido de uma perícia psiquiátrica a um morto. Não há ali referência alguma a um exame psiquiátrico, nem é feito pedido de realização de nenhuma perícia.

Quando muito, em face da pretensão dos requerentes, pode aludir-se a uma perícia sobre registos clínicos – corrente na prática dos tribunais e da Medicina Legal em múltiplas situações idênticas – para avaliação da capacidade testamentária de alguém na data em que terá feito o testamento.

E as referências escabrosas, do género “a morada indicada de contacto era a campa do falecido no cemitério onde está enterrado” ? Como nasceram? Onde se basearam?

O que é indiscutível é que tudo isto foi publicado, saiu no DN, foi repetido à exaustão por toda a comunicação social – sem qualquer tentativa de confirmação prévia, sem qualquer preocupação de ouvir o outro lado da notícia (que prontamente teria esclarecido a realidade, abortando o promissor achado).

Tem que compreender-se que entre uma verdade cinzenta e banal e uma mentira com tanto potencial não havia hesitação possível.

Falando sobre isto, ouço sempre as mesmas observações dos interlocutores: – e vocês não desmentiram, não esclareceram o que aconteceu? Repito-lhes, exausto: – eu disse, eu disse, disse a quem me foi possível e me quis ouvir, expliquei, provei de provas na mão… mas ninguém quer saber. O assunto, assim, não existe.

Muito mais haveria para dizer. Não sei porém se existirá alguma utilidade nisso. A pedra atirada nunca volta atrás. Fica uma sensação amarga de impotência – todo o esforço contra a banalização deste mecanismo alucinante esbarra no muro da indiferença e do cinismo. Toda a gente sabe já que é mentira – mas ninguém parece importar-se verdadeiramente com isso.

Nota: Por opção do autor do texto, este foi escrito sem recurso ao Acordo Ortográfico.


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