Opinião (José Lúcio/ Juiz) A justiça tem as costas largas.


Os tribunais aplicam as leis, mas não fazem as leis que aplicam. Estão por isso condenados a serem eles próprios o alvo do descontentamento de quem critica as leis aplicadas, sem que lhes caiba a responsabilidade pelas orientações nelas contidas.

José Lúcio

(Juiz Presidente da Comarca de Beja)

Esta fatalidade é em si mesma inevitável dada a lógica da separação de poderes, que impõe clara distinção entre legislativo e judicial, e a permanência de uma extensa desinformação em vastas camadas da população.

Assistimos assim quase diariamente a manifestações de descontentamento contra os tribunais que se traduzem em atribuir-lhes culpas que efectivamente não lhes pertencem. Na realidade os tribunais são um órgão de soberania que não tem sequer a faculdade de dispor sobre as questões da sua própria vida.

Mas muito menos compreensível do que essa generalizada desinformação é a tendência que se observa ao nível dos responsáveis políticos e de muitos fazedores de opinião, que não podem alegar desconhecimento, para atirar para as costas da justiça a carga das responsabilidades que competem naturalmente a outros.

Por exemplo, processos recentes vieram trazer à evidência a necessidade de repensar escolhas normativas que obstaculizam gravemente à concretização  dos objectivos da justiça penal.

Múltiplas vezes é apontado com justificada repulsa o resultado indesejado, e salienta-se que em Portugal dificilmente cumprirá pena de prisão quem tenha poder e dinheiro para utilizar extensa e indefinidamente todo o arsenal de recursos e reclamações que as leis processuais concedem. Mas conclui-se esticando o dedo acusador para a justiça, como se fosse esta a estabelecer esse arsenal.

A verdade é que o garantismo extremo acaba por instituir um sistema que agrava de modo chocante o que resulta das desigualdades sociais e económicas. A lei é igual para todos, mas uns não têm outra hipótese que não seja sujeitar-se a ela enquanto outros podem sem limites recorrer aos meios nela disponibilizados para fugir às suas estatuições mais desagradáveis.

Num tempo em que a corrupção aos mais altos níveis do Estado constitui preocupação de primeira grandeza não pode deixar de estranhar-se a opção por escolhas legislativas que estabelecem autênticas garantias de impunidade para quantos se situam no seu âmbito de protecção. Impunha-se que as leis processuais fossem de tal forma que assegurassem a efectivação dos comandos judiciais, em vez de estabelecer escapatórias dispendiosas à disposição dos notáveis.

Os juízes, como rosto visível da justiça, são inevitavelmente associados às situações conhecidas em que as condenações ameaçam nunca passar da letra das sentenças.

O mesmo se pode dizer da questão sempre evocada da lentidão, obviamente referida aos processos com grande impacto mediático com que se debatem figuras públicas de primeiro plano. Como se fosse possível estranhar a dificuldade da marcha de certos processos de dimensão gigantesca quando toda a estrutura dos tribunais, em termos humanos e até físicos, está prevista para dimensões normalizadas, em que um juiz, um procurador e três ou quatro funcionários podem com naturalidade abarcar o conteúdo dos processos que lhes estejam afectos – mas não podem eficazmente enfrentar milhares de páginas, milhões de ficheiros, baterias de advogados, centenas de testemunhas… ainda por cima com celeridade, como é de bom tom exigir-se.

Uma rede fabricada para apanhar passarinhos não serve para apanhar passarões. Quem produz as normas que nos regem terá necessariamente que ter presente essa realidade. Sob pena de continuarmos a confrontar-nos com a insuficiência e a ineficácia dos nossos mecanismos judiciais em campos essenciais para a nossa vida cívica.

O combate à corrupção e à impunidade passa por decisões que só podem emanar do poder político e legislativo. Assim haja vontade para tanto.

(Texto escrito segundo a norma ortográfica anterior ao AO1990, por opção do autor).


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