Imigrantes: Lei criada para punir trabalho escravo ilegal sem condenações.


Donos de terras e explorações agrícolas nunca são responsabilizados criminalmente, apesar de lei de estrangeiros prever penas pesadas, sofrem meras contraordenações. Só os intermediários são julgados.

Há quase dez anos que existe uma lei que prevê penas de prisão pelo crime de “utilização da atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal”, mas ainda ninguém foi condenado. Na prática, a ação da Justiça tem-se limitado a perseguir as empresas de trabalho temporário que fornecem a mão-de-obra migrante e cujos sócios muitas vezes são absolvidos ou desaparecem, deixando para trás dívidas ao Fisco e à Segurança Social e trabalhadores a viver em condições miseráveis. Quem está no terreno (ler página seguinte) considera que enquanto não se responsabilizar criminalmente toda a cadeia de contratação as redes de exploração de migrantes continuarão com terreno aberto.

Consultando as estatísticas oficiais na Direção-Geral da Política da Justiça, não há registo de qualquer condenação ao abrigo do artigo 185A do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional (lei 23 de 2007) que prevê penas de prisão até seis anos (ou mais em caso de reincidência) pelo crime de “Utilização da atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal” para “quem, de forma habitual, utilizar o trabalho de cidadãos estrangeiros que não sejam titulares de autorização de residência ou visto que habilite a que permaneçam legalmente em Portugal”. O artigo, aditado em 2012 à lei que, em 2007, agregou várias diretivas europeias, penaliza também gravemente “o empregador ou utilizador do trabalho ou serviços de cidadão estrangeiro em situação ilegal, com o conhecimento de ser este vítima de infrações penais ligadas ao tráfico de pessoas”. Bem como se forem verificadas “condições de trabalho particularmente abusivas ou degradantes”.

“Empregador ou Utilizador”

O conceito de “empregador ou utilizador do trabalho” seria aplicável tanto às empresas de trabalho temporário que fornecem a mão de obra ilegal como aos donos, gestores ou firmas detentoras das terras onde ela trabalha. Mas, aparentemente, não tem sido opção para as autoridades que investigam este tipo de crime, segundo explicaram ao JN juristas, fontes judiciais e outras ligadas à investigação. Isto apesar da sucessão de casos, o mais visível dos quais levou, na primavera, o primeiro- ministro até Odemira, onde um surto de covid revelou as condições degradantes em que milhares de trabalhadores migrantes ali viviam, legais e ilegais. As mesmas fontes avançam como razões possíveis para a ausência de condenações – não há nenhuma avaliação disponível sobre a aplicação do artigo. 185A nesta perspetiva – o facto de outras tipificações serem escolhidas pelas autoridades nos inquéritos-crime. Normalmente optam pelos crimes de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas ou escravidão e sempre com o foco na atividade de redes organizadas, ficando a investigação à porta dos locais a que a mão de obra se destina.

Sempre como testemunhas

Outra explicação poderá ter a ver com a desvalorização pelo Ministério Público desta norma legal ou ainda a dificuldade em fazer prova da existência deste crime e responsabilizar diretamente quem dela mais beneficia. Muitas vezes, as vítimas, o elo mais fraco de toda a cadeia, voltam atrás nas denúncias ou desaparecem, pressionadas, e quem assiste aos crimes (vizinhos ou colegas de trabalho) recusa testemunhar, por medo ou para não comprometer o próprio ganha-pão, resultando os inquérito em arquivamentos ou absolvições. Nos poucos casos em que chega a haver arguidos ou acusações, este crime acaba consumido pelos restantes ou em absolvições em instâncias superiores. O que retira à lei qualquer sentido, como atesta o vazio nas estatísticas da Justiça. Mas mesmo nos crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas, os que mais frequentemente chegam aos tribunais, os donos das terras ou explorações agrícolas figuram no processo apenas como testemunhas, sendo as empresas de trabalho temporário e os seus detentores os arguidos.

Em Odemira a ACT detetou 1600 infrações em dois meses

O surto de covid entre trabalhadores agrícolas migrantes detetado em abril, em Odemira, veio expor as desumanas condições em que milhares deles viviam, legais e ilegais. Carlos Graça, diretor da Unidade do Litoral e Baixo Alentejo da Autoridade Para as Condições do Trabalho (ACT), revelou ao Lidador Notícias (LN) que só “entre maio e junho foram identificadas 1600 infrações alvo de contraordenações” no concelho, sobretudo trabalho não declarado e falta de declarações à Segurança Social, de seguros dos trabalhadores e médicas. Também o Serviço de Estrangeiro e Fronteiras (SEF) registava ali, no final de outubro, nove inquéritos por crimes de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e falsificação de documentos. Entre 2018 e 2020, apenas pelos dois primeiros crimes, 105 pessoas foram condenadas. O Observatório do Tráfico de Seres Humanos aponta o setor agrícola como o principal destino de mais de 80% dos imigrantes que chegam a Portugal.

“Leis existem para ser utilizadas”

MP e advogados consideram que lei de 2007 não é usada e que prova é difícil de fazer Alberto Matos, diretor em Beja da Associação Solim – Solidariedade Imigrante e coordenador distrital do Bloco de Esquerda , não tem dúvidas de que “sem uma responsabilização direta de toda a cadeia contratante, a escravização e exploração da mão de obra vai continuar”. Mas a questão não é simples e não há uma explicação definitiva para que do referido artigo 185A do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, que parece ter sido criado para englobar toda essa cadeia contratante, nunca tenha resultado qualquer condenação. A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados considera que “o Ministério Público parece não estar a enquadrar os factos como indícios do crime de ‘utilização da atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal’”. E que “talvez isso explique em boa parte a ausência de condenações”. Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, admite que existe “alguma dificuldade em demonstrar que os utilizadores do trabalho de cidadãos estrangeiros conheciam que as pessoas que estavam a trabalhar nas suas explorações agrícolas não eram titulares de visto ou autorização de residência”. São fornecidos por empresas de contrato temporário ou similares e “os donos das explorações agrícolas refugiam-se nesse facto para afirmar o seu desconhecimento”, explica. “As leis existem para ser utilizadas”, afirma o magistrado. “Estou convencido que, perante a perceção pública e atual dessa realidade, será mais difícil aos donos da exploração agrícola escudar-se na relação contratual e de igual forma, quer os magistrados do MP quer os juízes deixarão de aceitar como credível essa defesa”. Para Belchior de Sousa, advogado em Ferreira do Alentejo, a responsabilização solidária também é difícil porque o utilizador final faz “um contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho”. “Faz toda a diferença. (…) Não são obrigados a saber quem são.

Criminalização: Proposta do BE chumbada e queda do Governo trava nova lei

Em novembro, o Parlamento chumbou uma proposta de lei do Bloco de Esquerda que previa a responsabilidade direta do contratador final dos trabalhadores, legais ou ilegais, e não solidária como se verifica agora, em caso de infrações à legislação laboral ou de natureza criminal. PS, PSD, CDS-PP, Chega e Iniciativa Liberal votaram contra. Antes de cair, o Governo aprovou legislação que criminalizava com pena até três anos de prisão o trabalho não totalmente declarado. Entre outras coisas, obrigava ao “registo diário dos trabalhadores cedidos ou colocados por outras empresas em explorações agrícolas e estaleiros de construção civil”. Sobre esta matéria, nem a AHSA – Associação Horticultores, Fruticultores e Floricultores de Odemira, nem a OLIVUM – Associação de Olivicultores e Lagares do Sul quiseram comentar.

Teixeira Correia/ António Soares

(jornalistas)


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